série: o maior júri da história

A um mês do julgamento da Kiss, o que pesa contra o primeiro réu

Dandara Aranguiz e Pâmela Rubin Matge

data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Jean Pimentel (Arquivo/Diário)

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A um mês do primeiro júri do Caso Kiss, um dos momentos mais aguardados do judiciário gaúcho e nacional, O Diário dá início à série Caso Kiss: o maior júri da história, e traz à tona fatos que antecederam e outros que aconteceram na noite da tragédia, que completou sete anos no último dia 27 de janeiro. Embora cada réu tenha uma versão diferente em relação à tragédia, todos respondem por homicídio doloso simples com dolo eventual.

Campanha quer custear despesas de familiares e sobreviventes durante o júri da Kiss

Até o momento, será Luciano Augusto Bonilha Leão, 42 anos, o único a ser julgado em solo santa-mariense. Ele enfrentará o Tribunal do Júri, também conhecido como Júri Popular. A modalidade é prevista para crimes dolosos contra a vida, cujos jurados são pessoas da sociedade civil. O julgamento está marcado para 16 de março deste ano, no Centro de Convenções da UFSM.

Réu do caso Kiss se manifesta em redes sociais

Na última quarta-feira, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) deferiu os pedidos de desaforamento das defesas de Marcelo de Jesus dos Santos e de Mauro Londero Hoffmann e, com isso, três dos quatro réus deverão ir a julgamento em Porto Alegre - em dezembro de 2019, o TJ já havia concedido o desaforamento a Elissandro Callegaro Spohr.

A defesa de Luciano, por meio de um de seus advogados, Jean de Menezes, alegou que "ele tem o desejo de ser julgado o quanto antes" e que "quer mostrar que não teve participação nenhuma nessa grande tragédia". Por isso, quer ser julgado em Santa Maria e não pedirá desaforamento.

ACUSAÇÕES
Produtor da banda Gurizada Fandangueira, Luciano é acusado de provocar o incêndio, já que comprou e acionou o artefato pirotécnico que deu início ao fogo na boate Kiss em 27 de janeiro de 2013, que resultou em 242 mortos e mais de 600 feridos. 

A denúncia do Ministério Público aponta que "os denunciados Luciano e Marcelo concorreram para os crimes, pois, mesmo conhecendo bem o local, onde já haviam se apresentado, adquiriram e acionaram fogos de artifício 'Sputnik' e 'Chuva de Prata 6', que sabiam se destinar a uso em ambientes externos, e direcionaram este último, aceso, para o teto da boate, dando início à queima do revestimento e saindo do local sem alertar o público sobre o fogo e a necessidade de evacuação."

A propósito, o uso de fogos dentro de boates e outros lugares fechados, inclusive na Kiss, onde se apresentavam desde 2009, era frequente pela banda, segundo o próprio produtor. Isso acabou contrariando versões que dizem ter sido uma surpresa o uso do Sputnik e da chuva de prata.

Em depoimento à Justiça, em 22 de maio de 2014, Daniel Rodrigues, gerente da empresa Kaboom, local onde foram comprados os fogos de artifício usados pela banda Gurizada Fandangueira, afirmou que funcionários da loja orientaram Luciano que os artefatos comprados eram de uso externo (tubo com estopim de pólvora na ponta, que ao ser aceso, arremessa faíscas, ao custo de R$ 15, a caixa) e que havia produto de uso interno (espécie de caneta que solta fagulhas que não queimam - fogo frio -, ao custo de R$ 75 a unidade). Luciano teria dito que falaria com o restante da banda para ver se trocariam o tipo de artefato usado, segundo Rodrigues.

CONTRADIÇÃO 

Em 25 de novembro de 2015, no Fórum de Santa Maria, Luciano confirmou ao juiz Ulysses Fonseca Louzada sobre a compra do material, mas salientou que cumpria ordens de Danilo Jaques, responsável pela banda e único integrante morto na tragédia. Segundo o réu, foi Jaques quem o ensinou a manusear o artefato.  

Também em juízo, disse que costumava armar o sistema para acender o dispositivo em momentos específicos da apresentação do grupo. Na ocasião, Luciano chorou e disse ser inocente e não passar de "uma formiguinha entre as estrelas", que não mandava nada, nem sabia distinguir os vários tipos de artefatos pirotécnicos. Em depoimento à Polícia Civil, disse que havia comprado fogos de artifício sem queima.

Abaixo, relembre a versão do réu dada ao juiz e à Polícia Civil e o que a defesa pretende argumentar no júri diante dos fatos que pesam contra o produtor.

O que Luciano disse à Polícia Civil

Em depoimento à Polícia Civil nos dias 27 e 28 de janeiro de 2013, logo após a tragédia, Luciano afirmou que fazia apenas sete meses que integrava a  banda e disse que era o responsável por projetar o palco e deixá-lo pronto e em condições para o show. Como de hábito, segundo o documento policial, deixou preparado, nas laterais do palco, dois "fogos gelados", que seriam fogos de artifício sem queima, ligados por um sensor.

Afirmou que aquele era o terceiro show pirotécnico realizado pela banda na boate Kiss e que Kiko teria pleno conhecimento do espetáculo, nunca tendo alertado a banda de que o uso dos artefatos seria perigoso. Luciano ainda informou à polícia que era ele próprio quem fazia a aquisição dos fogos de artifício, e que o artefato usado no dia da tragédia foi adquirido pessoalmente na Kaboom, empresa de Santa Maria.

No relatório apresentado junto ao inquérito policial, em março de 2013, a Polícia Civil apontou que ficou "plenamente evidenciado que Luciano agia de forma totalmente amadora, pois não possuía qualquer treinamento quanto ao uso de materiais extremamente perigosos, sobretudo porque sabia que os fogos de artifício que adquiria na loja Kaboom eram para uso externo (...). Porém, mesmo assim, utilizava-os em locais fechados, pois o preço destes era muito inferior (...)."

  • Luciano disse que os shows pirotécnicos passaram a acontecer depois que entrou na banda e que meses antes já tinha ocorrido alguns shows com efeitos pirotécnicos, e que deu a ideia de que voltasse a acontecer
  • Confessou que colocou uma luva preta, tipo ortopédica, no cantor Marcelo com o artefato pirotécnico acoplado e em um determinado momento do show acionou por meio de um dispositivo à distância 
  • Afirmou que depois do uso, foi retirada a luva do vocalista e guardada junto com o equipamento 
  • Informou que cerca de três minutos depois, o percussionista Márcio avisou que havia fogo no teto e que atirou água da garrafa que estava bebendo e pediu para pegarem um extintor 
  • Luciano falou que o extintor de incêndio não funcionou

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Foto: Germano Rorato (Arquivo/Diário)/

O que Luciano disse ao juiz

O depoimento de Luciano à Justiça ocorreu em 25 de novembro de 2015. Ele foi o segundo réu a ser ouvido no processo criminal sobre o incêndio. Durante uma hora e sete minutos, o réu falou apenas ao juiz Ulysses Fonseca Louzada e não respondeu às perguntas do Ministério Público, da assistência de acusação e dos advogados de defesa.

Ao juiz, Luciano alegou ganhar R$ 50 por noite, inclusive na ocasião da tragédia. Explicou que era roadie (assistente de palco) e disse que não tinha nenhum poder de decisão, nem mesmo sobre o tipo de artefato pirotécnico usado nos shows, que, conforme garantiu Luciano, não queimavam.

Na ocasião, ele mostrou uma foto do artefato pirotécnico e explicou como ele funcionava ao juiz: não com uma luva, mas preso por meio de uma munhequeira nas costas da mão do vocalista. Confira alguns trechos do depoimento: 

  • "Eu era um freelancer, nunca fui da banda. Montava os instrumentos, levava água para os músicos."
  • "O Danilo me mandava comprar (o artefato), eu ia lá e comprava. Ele me entregava uma folha ao chegar na boate, dizendo como seria o show. Eu colocava na mão do Marcelo (vocalista). Danilo dava um sinal de quando acionar (o artefato) e eu acionava." 
  • "Para mim, era seguro (sobre uso do artefato). Nunca existiu um ensaio do show pirotécnico" 
  • "Márcio (percussionista) avisou que estava pegando fogo. Olhei, era uma bola de fogo. Atirei água mineral." 
  • "Marcelo pegou extintor. Não funcionou. Ouvi uma voz, que acho que era do Márcio (percussionista), dizendo: Fogo. Fogo." 
  • "Eu e Danilo (gaiteiro) estávamos em cima do palco. Disse: Danilo, vamos sair. Vamos morrer aqui." 
  • "Eu nunca quis gerar dor aos pais. Eu não sei o meu futuro. Muitas vezes pensei até em me matar. Jamais ia provocar alguma coisa que tirasse a vida de alguém" 

O que diz a defesa de Luciano

Atualmente, Luciano Augusto Bonilha Leão reside em Santa Maria e trabalha como DJ e com serviços de sonorização e iluminação. Nos últimos dias, conforme o advogado Gustavo da Costa Nagelstein, o réu parou de trabalhar e está passando por problemas psicológicos. O advogado rebate as acusações e diz que defenderá que Luciano deve ser inocentado: 

"Desde que aconteceu o fato, a pressão é muito grande e cada vez que ele se manifesta, acaba que as coisas saem um pouco distorcidas parecendo que ele é o bandido nessa história toda. A gente verifica que esse fato é uma fatalidade. Luciano é um trabalhador, é um cara que hoje caminha tranquilamente de cabeça erguida. Entendemos que esse sentimento de comoção que possa prejudicar o julgamento das pessoas não existe contra o Luciano. Desde o início, ele manifestou que queria ser julgado pela população de Santa Maria e esse foi um dos motivos pelo qual não pedimos o desaforamento.

Sobre a estratégia defensiva, o Luciano vai negar todas as acusações que fizerem contra ele. Os fatos que trazemos é que, naquela noite, ele, contratado pela banda, sem ter conhecimento nenhum das características internas da boate, vai lá para fazer o trabalho dele. Ele era roadie. Entregava uma garrafa d'água para o músico, uma guitarra, uma baqueta (...) Não tinha nenhum dever de cuidado para verificar se a casa atendia os requisitos legais, se a espuma era inflamável, se o extintor funcionava. Aí, chega na terceira música e ele tinha determinação de apertar um botão que acendia os fogos.

A questão dele ter sido alertado (sobre o artefato) é controversa. Nós fizemos uma prova no processo, de que o artefato foi comprado de forma individual. É como você comprar uma aspirina fora da caixa e sem a bula. Luciano comprou fora da caixa. Esse elemento (de ser alertado) é uma prova do dono da loja que quis tirar a responsabilidade das suas costas.

O Luciano não era nem da banda, era uma espécie de freelancer terceirizado. Chegava na apresentação e cumpria com o que era passado, mesmo que já tivesse se apresentado lá. Luciano não chegou de tarde para ver como estava a casa (boate). Esse dever de zelo é do Ministério Público e da prefeitura, mas no "jeito brasileiro", essas personagens estão dando risada. Será que essa é a Justiça correta?

Luciano punido e todos órgãos públicos sentados em suas cadeiras ganhando R$ 30 mil, R$ 40 mil por mês?"

1º JÚRI

  • Data -16 de março de 2020 
  • Réu - Luciano Augusto Bonilha Leão
  • Onde - Centro de Convenções da UFSM, em Santa Maria
  • Juiz - Ulysses Fonseca Louzada
  • Promotores - David Medina da Silva e Lúcia Helena de Lima Callegari
  • Advogados de defesa - Jean de Menezes Severo e Gustavo da Costa Nagelstein
  • Assistência de acusação - Pedro Barcellos pela AVTSM e demais assistentes contratados pelos familiares de vítimas

2º JÚRI

  • Data - Indefinida
  • Réus - Elissandro Callegaro Spohr, (a partir da esq.) Marcelo de Jesus dos Santos e Mauro Londero Hoffmann
  • Onde - Porto Alegre
  • Juiz - Indefinido
  • Promotores - David Medina da Silva e Lúcia Helena de Lima Callegari
  • Advogados de defesa - Jader Marques (Spohr), Tatiana Vizzotto Borsa (Santos) e Bruno Seligman de Menezes e Mario Cipriani (Hoffmann)
  • Assistência de acusação - Pedro Barcellos pela AVTSM e demais assistentes contratados pelos familiares de vítimas

PELO QUE SÃO ACUSADOS
Os quatro réus respondem criminalmente por homicídio simples com dolo eventual e, ainda, por 636 tentativas de homicídio. Em junho, o STJ afastou as qualificadoras, apresentadas pelo MP, de motivo torpe (ganância) e de meio cruel (asfixia e fogo)

Em tramitação

  • Pedido da defesa de Mauro Londero Hoffmann para que mude a tipificação do crime de homicídio doloso para culposo (ingressou no ano passado) e não haja júri. Até o momento, o STJ não se pronunciou
  • MP ingressa com recurso especial junto ao Tribunal de Justiça em 21 de janeiro deste ano contestando o desaforamento concedido à Elissandro em dezembro de 2019. Autor da ação, o MP quer que os quatro réus sejam julgados em júri único, na Comarca de Santa Maria. O efeito suspensivo foi negado em 28 de janeiro e aberto prazo para contrarrazões. Posteriormente, o recurso retornará ao TJ, que decidirá se remete ou não o pedido ao STJ

Cenários ainda possíveis

  • STJ acatar recurso do MP e os quatro réus serem julgados juntos
  • STJ acolher pedido da defesa de Mauro. Com isso, o réu não iria a júri popular, sendo julgado por um juiz

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