entrevista

'Quer acabar com a indústria da multa? É fácil', diz presidente do Observatório de Segurança Viária

Deni Zolin

Foto: ONSV (Divulgação)

A chamada "indústria da multa" voltou a ganhar os holofotes neste ano, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) anunciou que acabaria com as lombadas em rodovias - decisão que foi suspensa por decisão judicial na última quinta-feira. Durante visita a Santa Maria para uma palestra, em 9 de março, o presidente do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), José Aurelio Ramalho, afirmou que essas medidas são apenas para acalmar os caminhoneiros, mas irão beneficiar somente os infratores contumazes, colocando a vida de milhões de pessoas em risco. Segundo ele, é fácil acabar com a indústria das multas, basta respeitar as leis de trânsito.

Trecho da Avenida Liberdade recebe placas de sinalização de trânsito

Ramalho alega que os gastos com saúde para socorrer e tratar vítimas são muito maiores do que é arrecadado com multas. Ele diz, ainda, que parte das mortes poderia ser evitada se as estradas tivessem melhor estrutura. Porém, isso esbarra, muitas vezes, na falta de verbas para melhorar as rodovias. Confira, a seguir, uma entrevista concedida por Ramalho durante a passagem por Santa Maria.

Diário - 34 mil pessoas morrem no trânsito, por ano, no Brasil. Além de ser uma tragédia, qual o impacto econômico dos acidentes?
José Aurelio Ramalho - Os dados atualizados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que são gastos R$ 52 bilhões por ano, uma cifra significativa. Dá o orçamento de todos os Estados da Região Norte, mais Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul juntos. Esse dinheiro é gasto desde o resgate da vítima na rodovia, passando pelo atendimento hospitalar e pós-hospitalar, porque, infelizmente, o sequelado de trânsito continua gerando gasto social. Se você morre, estancou o gasto. Com sequelas, o gasto é permanente.

Diário - Além do sofrimento dele e da família.
Ramalho - Sim, ele arrasta junto um familiar que vai cuidar dele. Mas o impacto econômico também é avassalador, e é preciso alertar a sociedade. O acidente de trânsito não é ao acaso, não é uma fatalidade. Ele é uma série de imprudências, e de imperícias que levam ao acidente. Quando a gente fiscaliza, que é o que estamos discutindo com o governo federal, que quer acabar com os radares, popularmente, o cidadão gosta. Mas se você parar e refletir: você gosta da câmera do seu condomínio ou na escola do seu filho ou na entrada de sua empresa? Por quê?

Diário - Por dar segurança?
Ramalho - E por que você não gosta do radar? O radar está lá para te dar segurança, mas as pessoas acham que é para multar. O radar te protege de uma pessoa que ultrapassaria o limite de velocidade e iria matar você, que é o seu maior patrimônio. E quando não tem a presença do Estado de fiscalização, você só está beneficiando o infrator contumaz. O cara que tem três a quatro multas por ano é o mesmo que joga papel no chão, que não recicla o lixo. Ele não está nem aí. E o cidadão de bem não está nem aí para o radar, porque ele respeita a sinalização. Se você quer acabar com a indústria da multa, como faz? É fácil. Tira a multa. A maior sacanagem vai ser se todo mundo de Santa Maria, quando enxergar uma placa de 70 km/h, passar a 69 km/h. Quando estiver lá "Não ultrapasse", não vamos ultrapassar. Não vamos usar o celular. Olha, em um mês, nós ferramos a prefeitura, porque ela não vai arrecadar um centavo. Está na nossa mão. Assim como está na nossa mão reduzir nossos acidentes. Não depende de prefeito, não depende do deputado, do vereador, do presidente, não depende de vacina.

Diário - O que falta para mudar a cultura no trânsito?
Ramalho - Tem duas coisas. Enquanto estamos conversando aqui, estamos produzindo pregos tortos. Imagina uma fábrica em que, no final do dia, vai ter de desentortar todos os pregos. Você já desentortou prego? É fácil? Fica retinho? Não. É o que está acontecendo com o trânsito. Hoje, no final do dia, Santa Maria está colocando na rua 30 novos motoristas, mal habilitados. Eu fui adestrado, você foi. Você decorou meia dúzia de placas, e olha lá. Por que você tem de decorar o artigo 322 do Código de Trânsito que diz que se você passar no sinal vermelho, vai ter sete pontos na carteira? Você vai fiscalizar trânsito? Então, você não precisa saber isso. Olha o que aconteceu com um cidadão que morreu porque estava sem o cinto de segurança. Isso é estupidez, o cara morrer por isso. Será que ele era ignorante, que ele não sabia? Aí, você vai perguntar aqui, e a maioria não usa o cinto no banco traseiro, mesmo sabendo que esse cara morreu por isso.

Foto: Charles Guerra (Arquivo Diário)

Diário - O que é a tríade de segurança do trânsito?
Ramalho - O primeiro é educação na escola. Nós, do Observatório, criamos uma cartilha para as escolas que pode ser baixada de graça e impressa. O segundo é a formação do condutor. Também entregamos ao governo federal toda a metodologia para isso, com didática e pedagogia. Infelizmente, ainda não saiu. Mas a resolução sobre formação deve sair agora, e o trabalho sobre educação de trânsito nas escolas está parado no MEC (Ministério da Educação), mas já pode ser utilizado porque foi aprovado pelo Contran (Conselho Nacional de Trânsito). E o terceiro ponto da tríade são campanhas permanentes, porque a criança você ensina na escola.

Diário - O que o senhor acha da decisão do presidente Bolsonaro de querer acabar com lombadas?
Ramalho - O cara tem uma Previdência para cuidar, uma lei anticrime para aprovar, ele tem 13 milhões de desempregados. Por que ele falaria de trânsito? Por causa dos caminhoneiros, que estão com uma faca no pescoço do governo de novo. A primeira coisa que ele falou foi "Vou aumentar o tempo da CNH de 5 para 10 anos". "Vou aumentar os pontos de 20 para 40 ou 50 pontos". Depois, ele falou "vou acabar com os radares" e "vou acabar com o simulador de direção nas autoescolas". Essas quatro opções que ele fez foi para agradar caminhoneiro. Só que o tiro está saindo pela culatra, porque até o caminhoneiro quer o radar. Se você assistir às reportagens, tem caminhoneiros que falam que é preciso punir os infratores. A lombada está ali para proteger. Se você pegar os infratores contumazes, dá menos de 8% da população. Então, essas quatro atitudes que o Bolsonaro fizer, vai beneficiar quem? O infrator. Não é para o cidadão de bem, é para quem comete infração.

Diário - Com a evolução dos carros, há pessoas que defendem que poderia ser aumentada a velocidade nas rodovias para 100 km/h. Qual sua avaliação?
Ramalho - É questão de física. Eu peso 110 quilos e, na hora que desço uma escada, representa quase uma tonelada de peso no joelho. No trânsito, é a mesma coisa. Quando você caminha na rua e passa um carro a 40 km/h ou 50 km/h, o que você fala? Que está rápido, e não está rápido. A sua percepção muda. Por isso, 80 km/h é muito. Eu tenho um vídeo de um boneco sendo atropelado a 30 km/h e a 60 km/h. A 30 km/h, o carro bate no joelho, e você deita no capô. A 60 km/h, bate no pedestre, que bate no capô, gira e sobe. Voa acima do teto do carro. O carro passa, e o pedestre vai cair na rua. Ele morre na hora. São só 30 km/h a mais, não é nada. Entendeu a velocidade, agora? Você percebeu o risco e a velocidade? Na rodovia, a 80 km/h, se você bater num caminhão ou uma árvore, é 160 km/h.

Diário - Mas as pessoas dizem que a sensação é de que os carros são mais seguros.
Ramalho - Isso é uma verdade. Ele dá uma sensação de conforto e de percepção de segurança. Você lembra do Fusca? O próprio barulho do motor a 80 km/h te incomodava. Hoje, você não escuta quase barulho, e isso é um perigo. Se você andar a 100 km/h, 120 km/h, quando baixar para 80 km/h, tem a sensação de estar parado. Mas você só estava a 40 km/h a mais. Tudo é questão de percepção.

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