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Referência em saúde mental, psiquiatra conta sobre os desafios do confinamento

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data-filename="retriever" style="width: 100%;">Foto: Pedro Piegas (Diário)

Quando a tragédia da boate Kiss aconteceu, em 27 de janeiro de 2013, Vitor Crestani Calegaro, 39 anos, estava nos últimos dias da residência em psiquiatria no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm). Junto a outros profissionais, de toda a cidade, ele vivenciou os dias e meses seguintes ao incêndio que matou 242 pessoas e deixou mais de 600 feridas, ajudando a organizar o fluxo de atendimento aos sobreviventes.

Natural de São Borja, mas santa-mariense de coração, ele também foi um dos primeiros profissionais contratados para atuar no ambulatório de psiquiatria do Centro Integrado de Atendimento às Vítimas de Acidentes (Ciava), criado em função da tragédia e reconhecido no mundo inteiro.

Em outubro do ano passado, o psiquiatra e professor do departamento de Neuropsiquiatria da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) defendeu a tese de doutorado sobre o tema, na qual entrevistou 120 sobreviventes e 68 profissionais envolvidos no socorro, para acompanhar a evolução de sintomas de transtornos mentais em decorrência do incêndio. Atualmente, o especialista lidera um estudo que está monitorando a evolução de aspectos de estresse, ansiedade e depressão durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil.

Por todo esse currículo desempenhado na área da psiquiatria, Calegaro se tornou referência no assunto na cidade, no Estado e até no país. Músico nas horas vagas, também participou de homenagem recente a profissionais do Husm por meio de vídeo gravado em um estúdio montado na própria casa. Sobre os desafios do confinamento, ele relata como está sendo o período ao lado das filhas Helena, 8 anos, e Stella, 3, e da esposa, Milena Leite Silva.

Diário de Santa Maria - Quando começou a sua trajetória dentro do Husm? 
Vitor Crestani Calegaro -
Eu fiz minha faculdade na UFSM. Depois de concluir, trabalhei dois anos como clínico geral em uma unidade de saúde de Bento Gonçalves, e foi ali que eu tomei a decisão mesmo de fazer psiquiatria. Em 2010, comecei minha residência no Husm e quando faltava uma semana para eu concluir, aconteceu o desastre da Kiss. Encerrei o mestrado na metade de 2013, e, logo que eu terminei, entrei como professor substituto. Em 2016, entrei como efetivo. 

Diário - E como foi, na época, lidar com essa tragédia? 
Calegaro -
Eu estava de plantão no domingo pela manhã. Cheguei no hospital, às 8h, sem saber nada do que estava acontecendo. A primeira coisa que me falaram era que uma boate tinha pegado fogo. Foi bastante impactante. Eu já tinha uma filha na época e a primeira coisa que eu pensei foi nos pais. Foi doloroso para todos nós. 

Diário - O Ciava nasceu ali, não é? Como foi organizado o serviço de saúde mental naquele momento? 
Calegaro - O primeiro momento foi emergencial. Houve a preocupação do hospital como um todo em salvar vidas. No dia mesmo, foram poucos atendimentos para a psiquiatria. Ocorre que, naquela semana, eu tinha todos os dias de plantão, então eu acabei vivendo isso intensamente, do ponto de vista da emergência psiquiátrica. Aquela semana foi de organização e planejamento. O Husm começou a atuar com serviço voluntário e vários psiquiatras começaram a ajudar. Eu fiz minha última semana de residência e comecei a atuar como voluntário. Nesse meio tempo foi organizado o Ciava. Foram vários professores, de várias áreas médicas e profissionais do Husm que criaram o projeto. Eu comecei a atuar como profissional contratado em maio. Naquele primeiro ano, tínhamos o ambulatório dedicado, um plantão psiquiátrico 24 horas e um serviço de acolhimento do Ciava, com vários especialistas. Dali, a gente conversava, fazia um atendimento, e determinava o encaminhamento. Nesse trabalho, montamos um protocolo de atendimento diferente do que era feito, em termos de saúde pública, mas já seguindo diretrizes internacionais de trabalhos com traumas, que é justamente de chamar as pessoas e monitorar a evolução dos sintomas. Esses resultados foram publicados em um livro, que foi lançado em 2016, com os protocolos de atendimento às vítimas da boate Kiss. 

Hoje em dia ainda são poucos os centros que existem no Brasil para vítimas de traumas.

Diário - Como funciona o fluxo de atendimentos do ambulatório hoje? 
Calegaro -
É um fluxo interno. De maneira geral, as pessoas que são sobreviventes, quem teve contato com a tragédia, pede atendimento, vai ser feito o acolhimento, e desse acolhimento com a equipe, ele é encaminhado para a psiquiatria. Em 2014, eu e mais colegas começamos a elaborar o projeto Psicopatologia Decorrente de Trauma Psíquico (PDTP), para documentar e registrar como acontecia a evolução dos sintomas. Começamos a pesquisa em 2015, mesmo ano em que entrei no doutorado. O ambulatório de psiquiatria do Ciava atua tanto na clínica, como na psicoterapia. A conversa sobre trauma é uma conversa muito mais detalhada, mais profunda, mais delicada. A gente sempre busca ver o que temos dentro da nossa realidade e como podemos melhorar a qualidade de vida das pessoas. Hoje, a gente não atende só vítimas da Kiss, mas de outros traumas também. No início de 2015, conforme foi reduzindo o número de profissionais, fizemos algumas modificações no ambulatório e eu passei a atuar como coordenador e supervisor, com os residentes atendendo. E esse formato continua até hoje. Com supervisão em cada caso. Conheço praticamente todos os casos que passaram ali. 

Diário - Quais os resultados obtidos com a tua tese de doutorado? 
Calegaro -
A defesa foi ano passado. Começamos a pesquisar dois anos depois do incêndio, em 2015, e passamos três anos recrutando os entrevistados. Entrevistamos 188 pessoas, que foram diretamente expostas ao incêndio da boate Kiss e 10 parentes de vítimas. Muitos faziam atendimento com a gente no ambulatório de psiquiatria e outros faziam acompanhamento no ambulatório de pneumologia, vinculado ao Ciava. A ideia era comparar as pessoas que permaneceram saudáveis, com as que desenvolveram transtorno mental, e ver o que estava relacionado tanto ao adoecimento (psicopatologia), quanto ao fato da pessoa se manter bem (resiliência). Da tese, foram produzidos dois artigos. No primeiro, a gente verificou que tanto a resiliência, quanto o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), estão vinculados a certas características pessoais dos indivíduos, da personalidade, que influencia como a pessoa vai lidar com o estresse e, inclusive, na qualidade de vida. No segundo, a gente procurou agrupar os indivíduos de acordo com os transtornos que eles apresentavam, e percebemos que o TEPT nunca vem sozinho. Fizemos isso para poder classificar os fatores de risco associados a essas sintomatologias. A tese é uma parte da pesquisa PDTP, que está com o levantamento de dados concluído. Agora, estamos analisando os resultados. 

Diário - Você está liderando uma pesquisa a nível nacional sobre a saúde mental das pessoas durante a pandemia. Em que fase poderia dizer que estamos? 
Calegaro -
Diferente de outros desastres, a pandemia é um desastre crescente, em que as pessoas estão morrendo. O que se esperava, logo no início, é que as pessoas fossem sofrer um baque, no momento do estresse, e com o tempo as coisas iriam se acomodando. O que aparece são as consequências, alguns traumas decorrentes desse enclausuramento. Este é o momento em que esperamos que as pessoas estejam mais adaptadas a esse novo ritmo. Mas isso para àquelas pessoas que está tudo bem, para quem não foi afetado de alguma forma. Para essas pessoas, os problemas que aparecem são o tédio, a falta do convívio social das atividades que costumavam fazer antes. Mas, para algumas pessoas, não é bem assim, é um somatório de questões que vão se acumulando e tendem a piorar. O primeiro dele é a questão econômica, o endividamento. Surgem traumas que são decorrentes da situação toda, os conflitos familiares vão se agravando... Eu acho que tem uma realidade comum para todos, mas a maneira como cada um experimenta isso dentro da sua estrutura domiciliar e familiar é diferente. Tem pessoas com cenário mais favorável, e outras mais desfavorável. De qualquer forma, todo mundo está percebendo que está demorando mais tempo do que se imaginava para passar, e vai demorar mais. Logo que iniciaram as medidas de distanciamento, as estimativas eram de que iria até setembro. Agora, está parecendo que só vai terminar quando tiver uma vacina e todo mundo for vacinado. É uma situação que vamos ficar por um bom tempo. 

Diário - Como podemos lidar com essa incerteza? 
Calegaro -
Vejo cada vez mais se falar no novo normal. Seria uma maneira de seguir a vida, tentar ter um convívio de forma diferente do que era antes, mas tentando manter uma certa normalidade. Tem se falado nisso, porque as pessoas entenderam que não adianta se trancar dentro de casa e esperar passar e voltar ao que era antes. Estamos tendo que achar maneiras de seguir a vida, de manter-se produtivo, de manter as atividades com cuidado, com proteção, porque a situação de completo isolamento é insustentável, e isso parece evidente. Se aguenta um mês, dois, agora já estamos num ponto de esgotamento. Muitas pessoas já estão esgotadas dessa situação e tendo que achar uma maneira, e isso faz parte desse mecanismo de adaptação. Uma das formas que essa resiliência se apresenta, é o conceito de reconfiguração. A pessoa se adapta ao estresse, não sofre mais tanto, e ela acha uma alternativa. E nessa ideia de reconfiguração, ela se modifica, se reconfigura, é o novo normal. Mas no sentido da pessoa, isso tem um significado mais profundo, que é de pensar o que é importante na vida, o que tem valor. Tem várias mudanças acontecendo em termos de sociedade, muitas mudanças vieram para ficar. Ainda temos muitas incertezas, menos do que antes, mas ainda é um cenário de dúvidas. Se não tivermos um cuidado preventivo, em termos de saúde mental, vai haver sobrecarga dos serviços e recursos. 

style="width: 100%;" data-filename="retriever">Foto: Pedro Piegas (Diário)
Junto com as filhas Helena, 8 anos, e Stella, 3, e da esposa, Milena Leite Silva

Diário - Além de psiquiatra e professor, tu és músico. Recentemente, participaste do vídeo em homenagem aos profissionais de saúde do Husm, que estão atuando na linha de frente no combate ao coronavírus. 
Calegaro -
Sigo com a banda "Camaleão e os Bichos do Mato". A gente vai se apresentar no domingo, no 6º Rock and Blues Food Station, às 20h. O evento vai ser transmitido pela internet e é em alusão ao Dia Mundial do Rock, que é celebrado no dia 13 de julho. A banda existe há seis anos, temos um disco gravado e estamos trabalhando em um projeto novo, autoral. É uma parte de mim que não vivo sem. Aqui em casa eu montei meu escritório junto com o estúdio de música, foi onde, inclusive, eu gravei a minha parte do vídeo da música "Here Comes The Sun", dos Beatles, para o vídeo. No início foi mais difícil, teve muita demanda de trabalho, mas agora as coisas melhoraram e consegui incluir mais essa a música no dia a dia, é uma atividade de relaxamento, uma atividade criativa. Eu gosto não só de tocar, mas de compor, de criar a música e isso tudo é muito bom. 

Diário - E como está sendo esse período em casa, com a família? 
Calegaro -
Tenho duas filhas, a Helena, de 8 anos, e a Stella, de 3. E elas estão estudando em casa. Minha esposa é psicóloga. Estamos nos dividindo, fazemos do jeito que dá. Está sendo um grande desafio, passamos a maior parte do tempo em casa e acabamos nos dividindo em vários papéis, para arrumar a casa, fazer as atividades com as crianças, para manter o trabalho. Desde o início, a gente vem tentando várias formas de organização, e isso gera bastante cansaço, às vezes gera frustração, nos faltam certas habilidades às vezes. Somos pais, tentando fazer o melhor que dá. Às vezes funciona, às vezes não. É um desafio constante, que a maioria das pessoas está vivendo e encarando. Temos nos cuidado bastante, evitado de nos expor. O que a gente consegue fazer para dar uma descontraída é dar uma volta ao ar livre, sempre com proteção, mantendo o distanciamento. Temos conseguido, dentro do possível, fazer uma atividade física, como andar de bicicleta. Tem o lado da organização e das demandas, mas tem um lado muito prazeroso, de estar mais tempo com as minhas filhas, viver o dia a dia delas. Temos mantido o contato com os avós delas por celular, videochamada, conversamos com alguns amigos. 

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