Kiss 10 anos

Com amor, Joana: a carta de uma filha que não conheceu seu pai, vítima da Kiss

Thays Ceretta e Mauricio Araujo

Há exatos 10 anos, o incêndio da boate Kiss mudava o conceito de tempo às famílias ao impor a irreparável perda de 242 vidas, vítimas da tragédia. De lá até hoje, são 120 meses que mães e pais não abraçam mais os filhos; 3.650 dias em busca de justiça e respostas eficazes. São, ainda, 87,6 mil horas de reflexões e vazios. Mas, sobretudo, é uma eternidade de saudade e dor que se transformou em luta por mães, pais, avós, tios, irmãos e amigos que perderam pessoas amadas na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Em março daquele mesmo ano nascia Joana Carvalho Treulieb. Assim como a tragédia, ela completa 10 anos em 2023. A menina é filha da advogada Patrícia Carvalho, 45 anos, e do gerente da Kiss, João Aloísio Treulieb. O pai não sobreviveu ao incêndio. Morreu aos 29 anos, sem nunca conhecer a filha.

Joana se tornou referência de tempo a familiares das vítimas, que veem no crescimento dela motivos para continuar. Nesse mesmo período de vida da pequena Joana, uma série de acontecimentos marcou – e ainda marca – os desdobramentos daquela trágica madrugada de verão

Há uma década, a cidade, o país e o mundo pararam para acompanhar a tragédia. Nos dias seguintes, mobilizações empáticas às famílias tomaram conta de uma Santa Maria silenciosa e enlutada. A dor, a consternação e a solidariedade eram de toda uma cidade. Cobraram-se respostas. Pediu-se justiça. Afinal, mais de duas centenas de vidas foram ceifadas naquela madrugada de terror.

Meses depois, 28 pessoas foram responsabilizadas pela Polícia Civil, e quatro delas, pelo Ministério Público. Protestos, homenagens, processos e lutas de familiares e sobreviventes misturados com sentimento de impunidade foram constantes nos anos seguintes.
Levou quase nove anos para que, em dezembro de 2021, Luciano Bonilha Leão, roadie (ajudante) da banda Gurizada Fandangueira; Marcelo de Jesus dos Santos, músico do grupo; Elissandro Spohr e Mauro Londero Hoffmann, sócios da boate Kiss, fossem levados a julgamento. Eles foram condenados e presos. Oito meses depois, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul anulou o júri e os concedeu liberdade.

Carta ao pai

Foto: Vinicius Machado

Às vésperas de fazer 10 anos, Joana não recorda da maioria dos fatos. O que sabe sobre o pai são ressignificados a partir de lembranças e memórias da mãe e de familiares. Os álbuns de fotografias também permitem criar laços de amor com João Aloísio.


Com o tempo, a menina meiga, de sorriso fácil e voz suave, entende cada vez mais os impactos do caso Kiss. Se para muitos pais, mães e amigos a tragédia parece ter ocorrido ontem e a dor ainda é bastante latente, para Joana, os fatos são narrados em busca de resiliência. A rede de apoio formada pela família a permite conhecer a real história.


– Eu já passei lá na frente (boate Kiss) várias vezes. Parece que ali tem uma parte minha, sinto uma energia muito forte – revela Joana.


No ano passado, pela primeira vez, Joana esteve no Cemitério Santa Rita, onde o pai está sepultado. Em um trabalho da escola, ela decidiu escrever uma carta especial a ele para, em homenagem, dizer que o amor entre pai e filha, independentemente das circunstâncias, é para sempre e atemporal.


Na carta, Joana descreve a visita como “o melhor dia da sua vida” (leia a carta abaixo).

Oi pai, eu não tenho como falar isto pessoalmente, mas esta carta significa todo o meu amor por você. Desde que nasci, perguntava para a minha mãe onde você estava. Ela me disse que você tinha falecido. Então sempre tive curiosidade de te conhecer, mas só via as fotos. Pouco tempo atrás, pela primeira vez em 9 anos, que fui te visitar, e para falar a verdade foi o melhor dia da minha vida. Tchau. Te amo muito, muito.

De: Joana Para: Pai/você




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