Reencontro

Papagaio de 36 anos recebe da Justiça o direito de viver com sua “mãe humana” após terem sido separados em Santa Maria


As relações entre humanos e animais se estreitam cada vez mais, isso não é novidade. Mas até que ponto você iria para manter seu bichinho consigo? Já adiantamos que essa não é uma história comum, pois envolve ser humano e um animal silvestre, mais precisamente um papagaio, chamado de “Loro”

Sempre criado em meio a humanos, Loro teve uma mudança drástica há cerca de dois anos. Com um caminhar lento e penas em tons de verde, que se mesclam com amarelo e vermelho e azul, esse animal tem atualmente 36 anos e foi acostumado com o convívio familiar.

O papagaio morou com a primeira família em Santa Maria desde filhote, de 1987 até os seus 30 anos, completados em 2017. Ele morava com um casal e seu filho. Porém, após o falecimento da mãe, a família entrou em luto. Quem já viu um papagaio criado em casa sabe que eles costumam repetir frases e nomes, e com esse aqui não foi diferente. Muito apegado, costumava chamar a falecida senhora pelo nome, constantemente, e isso deixava filho e viúvo que tentavam seguir em frente entristecidos. Por isso tomaram a decisão de dar Loro a uma outra família.

Apaixonada pelos animais desde criança, Juliana adotou o papagaio. E, em fevereiro de 2017, levou Loro para casa. Lá, ele mergulhou mais ainda no convívio doméstico, pois além das pessoas, ele tinha contato com cachorros, periquitos e até vacas – animais que ela criava. Dentro de casa, tinha um cantinho particular com sua gaiola e, com o passar do tempo, adotou sua nova mãe. 

Como qualquer história de apego entre humanos e animais, o tempo foi passando e o amor entre os dois foi crescendo. Quando se deram por conta, os dois já eram “um grude”. O apego entre eles era tanto, que Loro permitia que somente Juliana lhe tocasse, limpasse sua gaiola ou lhe desse comida; do contrário, atacava.

Porém, em um sábado, dia 14 de agosto de 2021, com três anos de convívio, a relação tranquila e de amor entre eles passou por um grande desafio: após uma denúncia anônima por maus tratos, o Batalhão da Brigada Ambiental foi até a casa de Juliana. Ao confirmarem que a denúncia não procedia, os policiais se depararam com um papagaio na área dos fundos da casa. Como se trata de um animal silvestree não havia autorização legal para ter ele em casa, Loro foi apreendido e levado para o mantenedouro São Braz. E agora, como ter ele de volta?

— Eu não consigo acreditar até hoje nessa denúncia. Sempre tive animais em casa e não sou capaz de maltratá-los. Sobre o Loro, eu sabia que corria um risco com ele em casa, sem autorização, mas nosso vínculo ficou cada vez mais forte. Quando os policiais falaram que iam levá-lo, eu fiquei sem chão, chorava muito, entrei em desespero — afirma Juliana.

No domingo, um dia depois do ocorrido, ela foi até o criadouro, mas foi orientada a retornar na segunda-feira porque domingos são dias de visita e o parque estava lotado. Então ela retornou e pediu informações sobre como proceder com essa situação. Ela relata que sempre foi muito bem tratada por todos nos criadouro, porém ela só pensava em uma coisa: levar o Loro de volta para casa.

— Não queria ficar longe dele, já estava morrendo de saudade. Pensei até na possibilidade de conseguir algum trabalho voluntário para ficar perto do Loro no criadouro — conta.

Pela idade avançada e com dificuldades de interação com os outros animais, Loro ficou na enfermaria do criadouro. Lá, ele não recebia visitas, não era visto pelo público e também não podia ser chamado pelo “nome de Loro”, pois é um procedimento de rotina do local, com o objetivo de diminuir o apego entre tutor e bicho.

Acostumado com a rotina e convívio familiar, Loro ficou triste. Não queria se alimentar, brincar, não deixava que os veterinários lhe tocassem, entrando numa espécie de “depressão”, situação narrada por alguns funcionários que perceberam que o papagaio não estava contente ali.

Enquanto isso, Juliana, com o coração angustiado, procurava maneiras de tirar o animal de lá e foi orientada por funcionários de que só havia um jeito: entrar na Justiça. Um processo lento, caro e sem garantias de êxito, mas ela tinha que tentar. E foi isso que ela fez, procurou uma advogada para iniciar esse processo. É nesse momento que a advogada Miriane Maziero entra na história com o objetivo de resgatar o papagaio.

Em setembro de 2021, a advogada entrou com o primeiro pedido de guarda provisória de Loro. Ela relata que nunca tinha trabalhado com um caso parecido em sua carreira, mas ao estudar a situação, percebeu que seria possível entrar em uma batalha judicial.

— Tive que estudar esse assunto, pois não é uma situação comum, é uma causa diferente. Quando falamos em guarda, isso nos remete a um filho e não a um animal. Mas no decorrer da ação, percebi que isso vai muito além, não deixa de ser um ente da família, pela forma que a Juliana trata ele e a forma como ela ficou durante o processo — relata.

Miriane relembra que Juliana ficou extremamente abatida e nervosa, com medo de não conseguir reverter a situação. Crises de ansiedade, tristeza e perda de apetite eram sintomas causados pela saudade do seu papagaio.

Foi então, em outubro de 2021, cerca de dois meses depois, que a 3º vara cível de Santa Maria concedeu a guarda provisória de Loro para sua “mãe humana”. Durante esse primeiro momento, o responsável pelo mantenedor onde o papagaio estava foi ouvido para saber em quais condições ele se encontrava:

— O juiz queria saber como o Loro estava. No dia da apreensão, os policiais já haviam registrado no boletim de ocorrência que o papagaio estava saudável, mas se fez necessário ouvir um especialista. Ele também relatou que o papagaio “estava abatido” naquele local — detalha.

Além do depoimento, foram feitos laudos que atestavam o estado de saúde do papagaio, com todas as informações possíveis sobre os cuidados que Juliana tinha, desde a alimentação e remédios. O diploma de auxiliar veterinário dela também foi um ponto ressaltado no processo.

Ao analisar todas as informações, o juiz decidiu, então, que o melhor a se fazer naquele momento era deixar o Loro voltar para casa durante o decorrer do processo; pois o bem estar dele era junto da família.

A notícia foi recebida com muita alegria por Juliana, que aguardava por uma sentença positiva. Extremamente apegada e com medo de perdê-lo, o parecer favorável lhe deu um alívio. 

— Passei todo esse período sem apetite, me alimentava muito mal, tive várias crises de ansiedade, fiquei nervosa demais…isso parecia um pesadelo. Quando a Miriane me ligou avisando da guarda provisória foi um alívio. Só queria buscar ele — lembra.

E assim foi. No dia 20 de outubro de 2021, após assinar a papelada da guarda provisória, Juliana correu para o criadouro. Lá, as funcionárias, emocionadas com a história deles, aguardavam Juliana com o Loro. 

— Lembro que o Loro estava mais magro, ele ficou abatido com a situação. Mas quando cheguei lá e chamei pelo nome, ele entendeu. Levantou a cabeça, repetiu “loro” e me reconheceu — afirma.

Segundo ela, esse momento paga qualquer percalço enfrentado nessa luta. O reencontro entre humana e papagaio foi repleto de emoção. Lágrimas e carinho marcaram a volta de Loro para o seu lar.

— Na hora que ele me reconheceu, encostou o biquinho no meu rosto, se aconchegou em mim, eu só conseguia rir de orelha a orelha…aquilo compensou qualquer problema ao longo do caminho. Fiquei tão feliz, nas nuvens — conta, emocionada.

Já dentro do carro, Loro dispensou a gaiola, queria ir no colo de Juliana. A saudade era tanta que ele não desgrudou dela, e assim ficou já em casa. Aos poucos, ele foi retomando a rotina diária: comendo frutas e tomando seu próprio banho.

Loro, com o passar dos anos, foi adquirindo algumas manias, até pela sua idade já avançada, como não dormir no escuro, por exemplo, além de um gosto enorme por frutas em geral. Juliana relembra também, que na época que Loro estava no criadouro, ela levou um sacola de bergamotas para o papagaio:

— Loro sempre gostou de frutas, como butiá, melancia e bergamota. Um dia levei uma sacola cheia de bergamotas para o São Braz e pensaram que era um presente para os funcionários, mas era para o Loro! Afirmei que eles podiam pegar, mas que dessem algumas para o Loro, porque ele adora — conta.

Durante o processo, o Ibama recorreu da guarda provisória, porém a 3º Vara Cível de Santa Maria concedeu o parecer favorável a Juliana, pois, além de todas as informações favoráveis já detalhadas no processo, ela reforçou com o passar dos meses que tinha plenas condições de manter o papagaio sob seus cuidados e que ele estava feliz com ela.

Com tantas negativas, o Ibama recorreu ao TRF4 como última tentativa, sob a alegação de que “a guarda doméstica de animal silvestre sem a documentação legal constitui infração da legislação ambiental e que restrições à posse de animais silvestres são fundamentais para preservação das espécies e para evitar desequilíbrio ecológico”.

Porém, nesse duelo entre o órgão ambiental e Juliana, o TRF4, sob a representação da desembargadora Vivian Josete Caminha, negou o recurso e concedeu a guarda definitiva para Juliana. Na decisão, ela reforçou que a ave, com mais de 30 anos criada em ambientes domésticos e com visíveis vínculos afetivos, criou naquele local seu habitat natural. E reforçou as informações detalhadas no boletim de ocorrência da apreensão do Loro, em agosto de 2021, alegando que o animal estava em bons cuidados, recebendo alimentação adequada e em um ambiente arejado.

A desembargadora alegou que retirar o animal do ambiente doméstico e privá-lo da relação já estabelecida com os humanos, nesse contexto específico, não seria a melhor decisão para ele.

Com isso, em março de 2023, o TRF4 garantiu que a guarda definitiva do Loro à Juliana

A manutenção da fauna e da flora, além de proteger as espécies, é essencial. Mas nesse caso, o amor, o vínculo afetivo e a felicidade do animal não podiam ser sacrificados sob a alegação de proteção da espécie.

Desde então, Juliana respira aliviada com o parecer favorável. Agora, com a guarda definitiva do Loro, ela conta que se sente mais segura até em deixar o animal na varanda da frente de sua casa; receio que lhe atormentava anos atrás.

Miriane, a advogada, relata que essa decisão não é comum. Tanto é que precisou recorrer a outros processos a nível estadual buscando precedentes  favoráveis a sua cliente.

— Só achei um processo semelhante aqui no Estado, de muitos anos atrás. Quando abrimos o leque para o país, aí sim, existem processos semelhantes — explica.

Todo o processo levou tempo e dinheiro. Famílias que passam por situações semelhantes desconhecem a possibilidade de ir à Justiça pela guarda do animal ou não possuem condições financeiras de arcar com os custos. Mas para Juliana, ao olhar para trás, avalia que todo o investimento valeu a pena. 

— Foi um pesadelo, mas valeu a pena correr atrás para ter o Loro de volta. Muita gente me falava na época “que era só um papagaio”, mas é mais do que isso; há um afeto, um vínculo, ele será para sempre o meu bebê — conclui.

Legislação ambiental: pode ou não pode?

Papagaios como Loro, da espécie Amazona Aestiva, tem expectativa de vida de 80 anos. São animais frequentes aqui no país, principalmente no Mato Grosso e costumam vir para o Brasil através da fronteira com a Bolívia, Paraguai e Argentina.

Na história de Loro, a Justiça levou em consideração todo o contexto envolvido para conceder a guarda definitiva para Juliana

Mas manter animais silvestres em casa sem nenhum tipo de autorização configura crime ambiental, sob pena de apreensão do animal, além de outras punições. Quando Loro nasceu, na década de 80, estava vigente a Lei de nº 5.197/67, que trata, da mesma forma que os dias atuais, que utilizar, perseguir, apanhar, destruir ou caçar animais silvestres é expressamente proibido.

lei permite a criação de animais silvestres em casa somente em duas situações: é preciso adquirir esse animal através de um criadouro comercial, com emissão de nota fiscal ou se cadastrar como um criador amadorista; o animal adquirido dessa forma possui uma anilha na pata e um micro chip. Qualquer outra forma de criação diferente destas configura crime.

Conforme o Ibama, existem dois tipos de punições para o tráfico de animais: a administrativa, que corresponde à multa paga pela pessoa autuada, e a criminal, em um processo judicial. 

Segundo o Mantenedouro São Braz, é comum, principalmente no Rio Grande do Sul, que se crie papagaios em casa de forma ilegal:

— As aves, principalmente os papagaios, são os mais procurados. As pessoas criam esses animais e vão criando um laço afetivo, ensinam a cantar músicas, hinos de times…mas isso é uma agressão. Animais silvestres são bens do Estado, União e municípios, não das pessoas — afirma.

Mesmo com o passar dos anos e com a intensa fiscalização, somente no ano de 2022, o 2º Batalhão Ambiental da Brigada Militar resgatou 2.324 animais silvestres, sendo que, destes 1.081 foram devolvidos à natureza e 1.243 encaminhados a mantenedores oficiais.

As apreensões desses animais são feitas pela Brigada Militar, através do Batalhão Ambiental, enquanto o Ibama é o órgão executor.

Após a apreensão, um técnico especializado define se o animal tem condições de ser reintegrado a natureza, se permanecerá em cativeiro ou em casos específicos, se será submetido a eutanásia; tudo depende do estado de saúde em que o animal é encontrado. Por isso, o diagnóstico de um especialista é essencial.

Conforme afirma o mantenedouro São Braz, é compreensível o afeto criado, mas reforça que a liberdade deve ser sempre o melhor “habitat” para eles:

— A gente entende o afeto, mas animais silvestres são bens que Deus criou para o equilíbrio ambiental e não para ter em casa — pontua.

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