Foto: Vinicius Becker (Diário)
O Natal é tempo de vitrines iluminadas, casas decoradas e de muitas compras. Esse cenário, contudo, não faz parte da realidade da grande maioria da população que vive nas periferias de Santa Maria, onde um simples prato de comida pode significar o maior presente. Isso porque a fome, infelizmente, faz parte do seu cotidiano, especialmente de crianças, que agradecem com um sorriso a refeição. Por isso, ações e pequenos gestos podem fazer a diferença nesta época do ano. E muitas delas são lideradas por anônimos e sem publicidade. São várias iniciativas silenciosas que se espalham por bairros de todas as regiões da cidade, levando alimento, presentes, acolhimento e uma oportunidade de sonhar em meio a casas simples e ruas de chão batido.
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As ações solidárias espalhadas por Santa Maria revelam uma cidade que se organiza coletivamente para olhar para o próximo com a entrega de ceias e brinquedos. São projetos consolidados ao longo dos anos e também iniciativas mais recentes, todas guiadas pelo mesmo propósito: diminuir as desigualdades e levar o espírito natalino em um momento simbólico. Em meio a desafios sociais, cada vez mais evidentes, essas mobilizações reforçam a empatia, união e responsabilidade social.
O Amigo Secreto de Natal do Grupo Diário já é tradicional e foi uma das tantas campanhas deste Natal. Em sua sétima edição, a iniciativa, promovida em parceria com oito empresas de Santa Maria e com o apoio do Banco de Alimentos, beneficiou cerca de duas mil pessoas atendidas por 19 entidades assistenciais do município. Ao longo deste ano, foram reunidas 2.325 cartinhas escritas por crianças, adolescentes, idosos e famílias em situação de vulnerabilidade social. E com pedidos diversos: desde brinquedos até itens básicos para o dia a dia, como cestas de alimentos.
Prato de comida

Criada oficialmente em 2020, mas com ações solidárias desenvolvidas desde 2009, a Associação de Mulheres Rosas de Março mantém uma atuação constante no Bairro Lorenzi, na região sul de Santa Maria, atendendo, atualmente, mais de 230 pessoas – número que, com frequência, é superado pela demanda de quem busca apoio.
No último sábado, a entidade promoveu mais uma ação comunitária voltada ao Natal. Foi servido almoço com prioridade para as crianças, seguido da distribuição de bolo, em um momento marcado pela convivência, partilha e presença de famílias da região. Em razão da escassez de doações, não foi possível entregar presentes neste ano – a escolha foi por priorizar aquilo que é essencial: a alimentação.
Presidente da associação, Elisângela de Deus, 53 anos, explica que todo o trabalho é sustentado exclusivamente por doações de amigos e apoiadores, sem recursos fixos. As refeições – café da manhã, almoço ou janta – são organizadas de acordo com o que é arrecadado, com atenção especial a crianças, idosos, pessoas com deficiência e famílias em situação de maior vulnerabilidade social.

A ação do sábado reuniu crianças correndo pelo pátio, famílias sentadas à mesa e voluntárias organizando os pratos, em um ambiente simples, mas carregado de afeto. O clima foi de acolhimento e alegria, especialmente entre os pequenos, que celebraram o momento de refeição coletiva.
– É uma realização imensa, porque a gente trabalha 365 dias no ano para levar um pouco de alegria à comunidade. É simples, mas tudo é feito com muito amor. Só de ver as crianças sorrindo e se alimentando, a gente já fica muito feliz – afirma Elisângela.
Morador do Bairro Lorenzi, o pequeno Matheus Medeiros de Souza, 10 anos, que tem transtorno do espectro autista, não escondia a felicidade. No almoço comunitário – que sua mãe, Suelen da Silva Medeiros, 42 anos, ajudou a preparar como voluntária–, o que mais agradou ao pequeno foi o prato servido: batata e arroz. Em uma família com nove irmãos e sem pedidos especiais ao Papai Noel, Matheus contou à reportagem que a melhor parte do Natal é poder passar a data ao lado da mãe.
– O que eu mais gostei foi a batata e o arroz. E o que eu mais gosto do projeto são os presentes, às vezes, eu ganho um saquinho de doce e eu quero muito comer o bolo hoje (sábado), porque tem bombom no recheio. O Natal gosto de passar com a minha mãe e mais ninguém – diz o pequeno.
A mãe relata que esse tipo de ação não enche de alegria só o filho, mas as demais crianças.
– No Dia das Crianças, em um dos almoços que organizamos, teve criança que chegou correndo e pulou de alegria com o prato de comida na mão. Aquilo nos tocou profundamente e reforçou a vontade de fazer ainda mais. A gente segue devagar, conforme é possível, mas sempre com muito carinho – relata Suelen. A opinião é compartilhada por Elisângela. Segundo ela, um prato cheio também é um gesto de cuidado, dignidade e carinho.
De balas no início a ceias completas nos dias de hoje

Em outra ponta de Santa Maria, no Bairro São José, um gesto simples transformou o Natal de milhares de pessoas em Santa Maria e deu origem a uma das ações solidárias mais longevas da cidade, com 25 anos de história. O projeto “Amigos do Bob” começou de forma modesta, com a distribuição de balas pelas ruas, e, ao longo do tempo, cresceu até se tornar uma grande mobilização coletiva, marcada pela organização, pelo voluntariado e pelo compromisso com quem mais precisa.
Representante do projeto, Marcelo Antônio Rodrigues, 51 anos, conta que a ação nasceu em um momento pessoal de luto, quando o Natal havia perdido o sentido. A ideia inicial, construída com amigos, acabou se tornando uma forma de ressignificar a data e, com o passar dos anos, ganhou novas dimensões. Atualmente, o foco principal está na entrega de ceias completas, pensadas para garantir alimento, dignidade e acolhimento às famílias atendidas.
Neste ano, a expectativa é distribuir cerca de 1,5 mil ceias, cada uma composta por galeto assado, risoto, pães, panetone, além de brinquedos para crianças de até 10 anos e material escolar para os mais velhos. A produção dos alimentos começou na terça-feira, na Paróquia São José, no bairro de mesmo nome, com trabalho que se estenderia por toda a madrugada da véspera do Natal. A distribuição acontece nesta quarta-feira, após meses de preparação e organização.
Todo o funcionamento do projeto é baseado em um mapeamento prévio das famílias em situação de vulnerabilidade social, atendendo aproximadamente 8 mil pessoas. Cerca de um mês antes do Natal, os voluntários iniciam a captação de recursos – tanto financeiros quanto de alimentos – e percorrem os bairros onde a ação acontece. O trabalho é realizado em parceria com a Pastoral da Infância e Juventude e com lideranças comunitárias de diferentes locais da cidade, como Camobi, Ângelo Berleze, Zilda Armas, Km 3 e Estação dos Ventos.
O cadastro é feito de forma ativa: são os próprios integrantes do projeto que vão até as comunidades para identificar as famílias que necessitam da ceia. Cada núcleo familiar recebe uma ficha, que dá direito a uma ceia completa para até quatro pessoas. Em casos de famílias maiores, são entregues duas ou mais fichas, conforme a necessidade, garantindo que a quantidade de alimento seja suficiente para todos.
Segundo Rodrigues, o pré-cadastro é fundamental para assegurar que os donativos cheguem a quem realmente precisa e de forma justa. A proposta é clara: fazer o bem sem distinção, independentemente de religião, política ou qualquer outra diferença:
– Natal, para mim, é a bondade, é a união. O maior título que eu tenho é conseguir unir pessoas com o mesmo objetivo de ajudar os outros. Para mim, isso é o Natal. É fazer o bem sem olhar a quem, isso minha mãe me ensinou desde pequeno e eu continuo fazendo – afirma um dos idealizadores.
O nome do projeto e seu símbolo também carregam esse significado. Bob é um cachorro de plástico verde, escolhido, justamente, por não representar uma pessoa ou liderança. A ideia é evitar qualquer personalização da ação. Bob, explica Rodrigues, não é político, não ocupa cargos, não tem crença ou bandeira. Ele simboliza uma solidariedade coletiva, anônima e apartidária, construída pelo esforço conjunto de mais de 300 voluntários que acreditam no poder do cuidado com o outro.
Cartinhas que embalam sonhos

Desde 2020, o projeto de cartinhas de Natal da Vila Resistência, no Bairro Pinheiro Machado, zona oeste da cidade, transforma sonhos infantis. Todos os anos, cada criança escreve uma cartinha com pedidos de até R$100, que são disponibilizadas aos interessados em ser padrinhos. Em 2025, 40 crianças participaram da ação. Segundo a produtora cultural e dinamista social Melany Silva, 31 anos, a maior recompensa está no impacto emocional da entrega.
– A maior recompensa é ver a felicidade das crianças. Mas também é sentir a união da comunidade, ver pessoas que nem se conhecem se mobilizando por amor, por empatia e por acreditar que cada gesto faz diferença. A recompensa está em saber que um simples projeto consegue transformar o Natal de muitas famílias e também o coração de quem participa – resume Melany.
Todas as cartinhas deste ano foram adotadas, e a comunidade segue recebendo doações complementares, como panetones e caixas de bombom, para tornar a data ainda mais especial.
Brinquedos para os pequenos

Fundada pela líder comunitária Vera Pinto, 62 anos, a ONG Nossa Vida Sua Vida atua há 17 anos no Bairro Presidente João Goulart, região nordeste de Santa Maria, desenvolvendo ações socioeducativas, culturais e de cidadania voltadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social.
Neste fim de ano, a ONG preparou uma programação especial de Natal. Ao todo, 250 crianças e adolescentes receberam brinquedos, escolhidos a partir das cartinhas escritas por eles próprios. A programação começou no último sábado, com o espetáculo de Natal do projeto “Super Ação Através da Arte”, no Teatro Victorio Faccin, reunindo alunos das oficinas em uma apresentação aberta às famílias.
Já no domingo, foi realizada a distribuição de ceias de Natal às famílias atendidas. Para Vera, o Natal tem um significado muito especial:
– É o renascimento para o amor, para a vida e para a luz.
A data é entendida pela ONG como um momento de reforçar valores de cuidado, inclusão e pertencimento, especialmente para crianças e jovens que, muitas vezes, que sofrem com a invisibilidade.
Uma imensa fila para pegar um prato de feijoada
Na região oeste de Santa Maria, no Bairro Nova Santa Marta, o Projeto Trabalho Social Solidário promoveu, também no último sábado, a distribuição de feijoada para famílias da comunidade. Foram utilizados 25 quilos de feijão. Uma imensa fila se formou em frente à residência de um dos idealizadores da iniciativa, Francisco Portela, onde ocorreu a ação e virou ponto de acolhimento para moradores que buscavam uma refeição e um momento de confraternização.
Após a entrega dos alimentos, as crianças receberam bolo e presentes, distribuídos por voluntários caracterizados como “ajudantes do Papai Noel”. Ao total, foram beneficiadas 1 mil pessoas, entre crianças e adultos. Criado em 2016, o projeto nasceu com o propósito de levar alegria, cuidado e alimentação às crianças e famílias em situação de vulnerabilidade. A iniciativa é viabilizada com apoio de amigos, empresários locais e moradores, que colaboram de forma voluntária para tornar a ação possível. Para seu Francisco, a motivação vai além do gesto solidário:
– A melhor recompensa de ajudar é Deus. É por Deus que a gente faz. Vem do coração da gente.
Solidariedade foi a grande campeã em partida de futebol

A solidariedade foi a grande motivação para dois times entrarem em campo, correrem muito e suarem a camisa. Ao final, independentemente do resultado, todos saíram vencedores, uma vez que a intenção é compartilhar, acolher e fazer do gesto coletivo uma conquista comum.
Na região norte de Santa Maria, esse espírito ganhou forma com a realização de um jogo beneficente, que chegou à quinta edição, e da festa de Natal para as crianças, realizada pela nona vez na Vila Oliveira, no Bairro Passo D’Areia. As ações, organizadas por moradores da localidade, têm como principal objetivo arrecadar doações e garantir um Natal mais alegre e com dignidade às crianças da comunidade.
A partida ocorreu no dia 14 de dezembro, no Campo do Paysandu, e serviu como ponto de mobilização para a coleta de alimentos, brinquedos e recursos destinados à confraternização infantil. Já a festa foi realizada no último domingo, na Rua Coronel Valença, reunindo crianças e famílias em uma tarde marcada por brincadeiras, lanches e a entrega de presentes. Responsável pela iniciativa, Carlos Alberto Martins Soares, conhecido como Bebeto, 50 anos, comenta que o projeto existe desde 2016 e surgiu da vontade de levar alegria às crianças do bairro onde mora. Com o apoio de amigos, empresários locais e vizinhos, a ação é organizada de forma totalmente voluntária e conta, em média, com cerca de 10 pessoas na organização – número que frequentemente cresce com a ajuda espontânea da própria comunidade.
– A maior recompensa é ver as crianças faceiras ao ganhar seu brinquedo de Natal. Isso é muito gratificante – destaca Bebeto, sobre o objetivo do grupo.
Novas iniciativas, velhos sonhos

Pela primeira vez, o Natal Solidário também chegou ao Bairro Passo das Tropas, na zona sul da cidade – o mais novo, oficialmente criado em Santa Maria –, por meio de uma iniciativa voltada especialmente às crianças da comunidade. A ação ocorreu, na última segunda-feira, no Minimercado Marques, localizado na Rua Augusto Kunz, unindo solidariedade, afeto e envolvimento local. Ao todo, 100 crianças foram beneficiadas.
Idealizadora da ação, a proprietária do estabelecimento conta que já promove festas para os pequenos no Dia das Crianças há algum tempo e, neste ano, decidiu ampliar o gesto para o período natalino. A programação incluiu entrega de doces e brinquedos, com a presença do Papai Noel.
– Sempre amei fazer esses eventos com as crianças. Elas são a minha energia diária, e é muito gratificante poder vê-las sorrindo – comenta a organizadora e empresária, Lune Marques, ao explicar a motivação por trás da iniciativa.
A ação conta com o apoio de fornecedores e clientes do comércio, que contribuíram com a doação de doces e brinquedos, reforçando o espírito de cooperação entre comerciantes e moradores da região. Para a organizadora, o Natal vai além da troca de presentes.