violência contra mulher

Judiciário recebe sete pedidos de medida protetiva por dia em Santa Maria

Camila Gonçalves

Fotos: Victoria Debortoli e Renan Mattos (Diário)
O corpo de Vanusa Rezer Muller, 37 anos, foi encontrado no Rio Vacacaí. Para a polícia, ex-companheiro cometeu feminicídio

Quando se trata de violência contra a mulher, o perigo não mora ao lado, mas, sim, geralmente, debaixo do mesmo teto. No ano passado, uma pesquisa de vitimização com mulheres realizada pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostrou que 61% dos agressores brasileiros eram conhecidos das vítimas. Em Santa Maria, não é diferente. Todos os casos suspeitos de feminicídio e de tentativas de feminicídio registrados em 2018 foram cometidos por pessoas próximas à vítima.

Conforme as investigações da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), em 2018, foram seis tentativas de feminicídio registradas na cidade. Dois agressores consumaram o assassinato, um deles era marido da vítima, e o outro, ex-companheiro. Na lista de suspeitos, repete-se o vínculo dos autores com as vítimas. A maioria são ex-companheiros e maridos.

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A técnica em enfermagem Vanusa Rezer Muller, 37 anos, encontrada morta no Rio Vacacaí, na Vila Schirmer, Bairro João Goulart, na manhã de 13 de outubro, já havia feito ocorrência na Polícia Civil contra o ex-companheiro. Ela havia desaparecido na noite anterior àquela manhã em que o corpo foi encontrado, e a autoria do crime foi atribuída ao ex-companheiro no inquérito policial. De acordo com o filho dela, Guilherme Muller Pereira, 22 anos, o casal estava junto há 20 anos, mas Vanusa queria a separação. Segundo Guilherme, em uma das tentativas, a mãe teve de chamar a polícia por conta da insistência do parceiro em não aceitar a decisão dela.

O casal tem uma filha de 7 anos, que está com a mãe de Vanusa. Com 22 anos, o filho dela - ele não é filho do suspeito de matar Vanusa - divide o tempo entre o trabalho de cozinheiro e a faculdade de Ciências da Computação. Há três anos, deixou de morar com a mãe. Ele poderá ficar com a guarda da irmã, caso o juiz assim decida.

O suspeito está preso preventivamente desde o dia 17 de outubro, na Penitenciária Estadual de Santa Maria (Pesm).

VIOLÊNCIA MASCARADA

Vanusa havia solicitado medida protetiva ao Poder Judiciário, mas o procedimento foi negado. De acordo com o juiz titular da Vara de Violência Doméstica, Rafael Pagnon Cunha, o pedido foi feito junto com um registro na Delegacia de Polícia de Pronto-Atendimento (DPPA) de Santa Maria, no dia 10 de agosto. No boletim, Vanusa pedia o fim do contato com o ex e relatou que ele esteve na casa dela para retirar três aparelhos de ar-condicionado. Segundo o magistrado, não havia violência física, histórico de agressões e perseguição. O entendimento do juiz era de que desentendimento envolvendo bens deveria ser resolvido na Vara de Família.

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- Não havia nada que indicasse probabilidade de atos mais violentos ou escalada de violência - declarou o magistrado.

O filho de Vanusa traduz em termos práticos o silêncio deixado nas entrelinhas da papelada policial. Segundo ele, o ex-companheiro tinha ciúmes da técnica em enfermagem, era agressivo e já havia agredido a parceira tanto física quando verbalmente. Por esse motivo, Guilherme não tinha uma boa relação com o companheiro da mãe.

- Às vezes, fico bem abalado. Filho, às vezes, briga com a mãe, e fico pensando que, em vários momentos, sinto que tinha coisas que não fiz, mas a gente não pode voltar no tempo e mudar as coisas - lamenta Guilherme.

O FEMINICÍDIO

  • É uma qualificadora do crime de homicídio. A tipificação altera a pena fixada para um assassinato. O réu pode ser condenado de 12 a 30 anos de reclusão, enquanto a pena dos homicídios simples estão entre 6 e 20 anos de reclusão
  • Quando o crime motivado por desprezo, ódio ou sentimento de posse em relação à mulher
  • A Lei do Feminicídio (Lei Federal 13.104, de 9 de março de 2015) foi criada em 2015. Em Santa Maria, desde sua criação, foram registrados sete casos de feminicídio
  • Em 2018, houve seis tentativas de feminicídio e dois feminicídios consumados. E 100% dos suspeitos são conhecidos das vítimas

FILHOS, DINHEIRO E VERGONHA INFLUENCIAM AS VÍTIMAS

Segundo o Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), com dados de homicídios até 2016, a mulher que se torna vítima fatal, muitas vezes, já foi vítima de uma série de outras violências de gênero, como violência psicológica, patrimonial, física ou sexual. Ou seja, muitas mortes poderiam ser evitadas se as mulheres tivessem tido opções concretas e apoio para conseguir sair de um ciclo de violência. Em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no país. Nos últimos 10 anos, houve crescimento de 6,4% nos homicídios de vítimas do sexo feminino.

Em Santa Maria, sete pedidos de medidas protetivas chegam por dia ao Judiciário. Os instrumentos judiciais previstos na Lei Maria da Penha para evitar o contato do agressor com a vítima são remetidos ao Juizado de Violência Doméstica. Por mês, são cerca de 200 pedidos na cidade. Desses, 80% são deferidos, ou seja, acatados. Hoje, tramitam quase 3 mil processos na unidade, e são realizadas em torno de 180 audiências por semana. O juizado também faz atendimentos em balcão, quando a vítima procura a instituição para buscar informações sobre medidas ou outros direitos.

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Segundo a promotora Daniela de Quadros Mallmann Paz, da 7ª Promotoria Criminal de Santa Maria, que atua em processos de Violência Doméstica, a dificuldade das vítimas em se desvincular dos parceiros está ligada à dependência financeira, aos filhos e à vergonha de expor o problema. Muitas vão para a Casa Aconchego, um abrigo para mulheres e filhos alvos de violência, mas, como o local permite estada temporária, elas logo voltam a viver sob o mesmo teto dos agressores. O endereço da Casa do Aconchego não é divulgado por medida de segurança aos hóspedes.

- A gente nota que elas comentam que foi só um tapa, um puxão de cabelo. "Eu nem registrei porque era uma coisa leve", dizem. Só que a violência tende a aumentar e, geralmente, se torna bem mais grave - explica a promotora. 

REDE DE APOIO

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Para a delegada Débora Dias, da Deam, seria necessário um Centro de Referência para atender mulheres vítimas de violência, além de projetos que as incluam no mercado de trabalho, como cursos profissionalizantes e creches em turnos integrais, assim como debates em escolas para discutir questões de gênero e direitos humanos.

Conforme o juiz Rafael Pagnon, as vítimas em situação de dependência financeira são encaminhadas à Defensoria Pública para ajuizar ação de divórcio ou dissolução de união estável, com pedido de partilha de bens e alimentos. O juizado oferece atendimento psicológico para os envolvidos que aceitam o tratamento.

A VIOLÊNCIA EM NÚMEROS

Tentativas de feminicídio

  • 6 (4 cometidas por ex-companheiros das vítimas, uma por um filho e outra por um genro da vítima) 

Feminicídio consumado 

  • 2 (um caso cometido pelo marido da vítima e outro pelo ex-companheiro) 
  • Cerca de 2 mil medidas protetivas já chegaram ao Judiciário até outubro deste ano
  • Aproximadamente 160 medidas são deferidas (autorizadas) pelo Juizado da Violência Doméstica por mês 
  • Dessas, 70 são monitoradas pela Patrulha Maria da Penha, órgão da Brigada Militar

OS AGRESSORES TAMBÉM RECEBEM AMPARO

Apesar da ausência de debates sobre respeito ao gênero feminino, uma iniciativa voltada para os homens está em andamento em Santa Maria desde abril. Profissionais voluntárias do Juizado da Violência Doméstica criaram um grupo reflexivo para homens agressores. As psicólogas Gracielle Almeida de Aguiar e Elaine Mazzardo foram as responsáveis por coordenar a primeira edição do grupo. A ideia é que os diálogos em conjunto ajudem a criar mecanismos para resolver problemas nos relacionamentos sem o uso da violência. No Rio Grande do Sul, só as comarcas de Caxias do Sul e Porto Alegre têm sessões voltadas para eles.

Os participantes são definidos pelo juiz titular do Juizado da Violência Doméstica. Os critérios de escolha são a existência de filhos em comum, o não uso severo de drogas e a não condenação em crimes violentos. Os homens recebem uma intimação judicial, mas não são obrigados a frequentar os encontros.

Oito encontros já foram realizados no Salão do Júri, no Fórum de Santa Maria. De todos os convocados no primeiro grupo, 50% compareceram. Ao todo, 18 homens frequentaram os encontros. Um desistiu de participar. E quatro dos 18 confessaram ter batido nas mulheres. A frequência no grupo é relatada ao juiz, mas não conta para atenuar a pena.

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- O protagonismo deles nos ciclos de violência, muitas vezes, é mera reprodução do ambiente em que foram criados. Nem mesmo pensam sobre isso, unicamente reproduzem aquilo que lhes foi ensinado. Buscamos quebrar esses ciclos - explica o juiz Rafael Pagnon.

Ações como essa já foram discutidas no Congresso Nacional. Um projeto de lei foi aprovado no Senado em 2016 para que o juiz inclua, entre as medidas protetivas da Lei Maria da Penha, a necessidade de o agressor frequentar centros de educação e reabilitação. A proposição está em análise na Câmara dos Deputados.

A psicóloga Gracielle, que está fazendo uma dissertação de mestrado em Psicologia na UFSM sobre homens autores de violência contra a mulher, explica que, a longo prazo, a ideia é diminuir a reincidência dos agressores ou a continuidade do comportamento agressivo com outras parceiras. A ação também abre espaço de fala para os homens e permite a desconstrução dos papéis do homem e da mulher na relação.

- Só se pensa no homem quando se fala em punição. Por conta da cultura do machismo, o homem só se sente à vontade para falar de coisas práticas, não sobre o emocional. Assim, a gente divide a responsabilidade. Não é só a mulher que precisa desse olhar e que precisa se recuperar daquela violência - relata a psicóloga.

DEMANDA ALÉM DA CAPACIDADE PARA A PATRULHA MARIA DA PENHA

Ana*, 57 anos, está sob proteção da Justiça e conta com a ajuda da Patrulha Maria da Penha

A Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar, ajuda a fiscalizar o cumprimento das medidas protetivas. A equipe de quatro policiais acompanha cerca de 70 casos por mês em Santa Maria, o que representa cerca de 43% das 160 medidas concedidas. São selecionados os casos mais urgentes.

As intervenções da Patrulha Maria da Penha já evitaram que uma das tentativas de homicídio se tornasse homicídio consumado. A Patrulha fazia uma visita de rotina a uma vítima quando deparou com o autor das agressões, no caso, o filho dela, no pátio da casa. O suspeito, dependente químico, já havia tentado abusar da mãe e havia a esfaqueado naquele dia. Ele foi preso em flagrante.

Em outro caso, uma vítima está sob a proteção da Justiça desde agosto deste ano. Ana*, 57 anos, estava há cinco anos com o, agora, ex-companheiro quando foi agredida por um pedaço de pau. Ela perdeu dois dentes e sofreu um ferimento no lábio. A exemplo do que presencia a promotora, Ana diminui os efeitos do fato e atribuiu a agressão do parceiro ao álcool.

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- Não tenho medo dele. Ele é mais agressivo com as palavras. Ele só é ruim quando bebe - conta a vítima.

O ex-companheiro foi preso preventivamente por ter saído da cidade sem comunicar o juiz. Ana, que vive da pensão do ex-companheiro, disse que estava com ele pela companhia, mas que vem sendo aconselhada pelos policiais da Patrulha Maria da Penha a não aceitar a companhia que a machuca.

Para a psicóloga Gracielle Almeida de Aguiar, a mulher também "reincide" em relações de violência. Por questões psicológicas, ao sair de um relacionamento abusivo, ela acaba encontrando outros parceiros com os mesmos padrões de tratamento.

- Isso acontece porque aquela é a forma que ela entende como amor - explica a psicóloga.  

*O nome foi modificado para preservar a vítima

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