100 meses de espera

'Grande responsabilidade, e um dos maiores júris do país', afirma novo juiz do Caso Kiss

Marcelo Martins e Pâmela Rubin Matge

Foto: TJ/RS (Divulgação)

Orlando Faccini Neto, 44 anos, é o atual presidente da Associação dos Juízes (Ajuris) e titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre. Ele assumiu o juizado em 5 de abril deste ano junto da incumbência de conduzir o júri do Caso Kiss, marcado para 1º de dezembro. Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), é doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa (Portugal).

Faccini ingressou na magistratura em 2001, na comarca de Jaguarão. Em 2016, assumiu como titular do 1º Juizado da 1ª Vara do Júri de Porto Alegre, atuando no gabinete do ministro Felix Fischer, no Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, quando auxiliou em julgamentos de recursos de processos da operação Lava-Jato.

Na última terça-feira, o juiz concedeu entrevista exclusiva ao Diário. Acompanhe.

Diário de Santa Maria - No dia 27 de maio completam-se 100 meses da tragédia que mudou a história de Santa Maria, do Estado e do país: o incêndio da Boate Kiss. Desde quando e de que forma o senhor acompanhava os desdobramentos do caso?

Orlando Faccini Neto - De certo modo, desde o início acompanho o caso, dada a dimensão dos fatos, a repercussão havida na imprensa e a singularidade do processo criminal. Ninguém terá ficado indiferente ao elevado número de vítimas, independentemente das questões jurídicas sobre a responsabilidade penal, que cercam o episódio. Mesmo à distância, observei os variados julgamentos e a tramitação dos recursos, como um espectador interessado nas discussões penais e processuais subjacentes, de grande envergadura e dificuldades.

Diário - O júri foi várias vezes adiado, remarcado. Transcorridos 100 meses do incêndio, qual sua leitura acerca desse tempo e das mudanças ao longo do processo do Caso Kiss?

Orlando - Procuro tratar do processo a partir do momento em que assumo a jurisdição respectiva. Não me cabe avaliar o que ocorreu no passado, em termos de desenvolvimento da marcha processual. Meu compromisso é dar-lhe o andamento devido, com a compreensão de todos os sentimentos e interesses envolvidos. Posso dizer, porém, que estruturalmente os casos de júri têm uma tramitação naturalmente demorada em nosso país, porque há uma primeira fase procedimental, em que se define se o acusado será ou não levado a julgamento, e da qual cabem diversos recursos previstos na legislação. Do mesmo modo, depois de realizado o júri, essa mesma trilha recursal é novamente reaberta; ou seja, não se trata de algo pontual, mas que compõe o quadro de uma estrutura processual que, evidentemente, precisa ser revisada.

LEIA MAIS DA REPORTAGEM ESPECIAL: À ESPERA DO JULGAMENTO DO CASO, TRAGÉDIA DA KISS COMPLETA 100 MESES

Diário - Passaram oito anos, 242 pessoas foram mortas e 600 feridas e Os réus serão julgados longe da sua cidade. Como o senhor recebe a responsabilidade de conduzir o júri do caso?

Orlando - Realmente, é uma grande responsabilidade e estou consciente de que se trata, inequivocamente, de um dos maiores júris do país. Recebo-a, todavia, com serenidade, com respeito e compreensão pela perspectiva de todos os envolvidos, em suma, com o real senso da sua importância, e, portanto, pretendo conduzi-lo a um desfecho, a partir da realização do júri.

Diário -Como irá se dedicar a conhecer o processo, já que é um dos maiores da história do judiciário brasileiro? Qual o tempo hábil?

Orlando - Estou buscando conhecer o processo em toda a sua extensão, com a leitura de todas as peças processuais e decisões pretéritas, e, além disso, tenho buscado toda literatura não jurídica, produzida a partir deste caso e de outros que, embora não sejam iguais, apresentem alguma similaridade. Não há exatamente um tempo hábil para fazê-lo, mas é possível dizer que estarei empenhado em reunir todas as condições para presidir o júri quando chegar seu momento.

Diário - O senhor pretende se reunir com o juiz Ulysses Louzada (magistrado que conduziria em Santa Maria, antes do desaforamento) para debater o processo ou isso não é possível? Como avalia o fato de o senhor não ser da comarca de Santa Maria?

Orlando - A definição pelo julgamento em Porto Alegre foi tomada pelas instâncias superiores, e a mim cumpre apenas respeitar o entendimento e realizar o julgamento. Não discuto o mérito dessas decisões. Acaso se me afigure necessário, seguramente conversarei com o magistrado que atuou anteriormente no processo. Tenho-o como um colega de enorme qualidade judicante, nosso trato pessoal é de respeito e amizade, de maneira que, se as circunstâncias impuserem, saberei ouvir suas observações.

Diário - Sobre o júri, marcado para 1º de dezembro deste ano, alguma outra providência foi tomada em relação à estrutura, local ou logística?

Orlando - Estamos avançando nisso, em reuniões de que participei e outras que os setores técnicos responsáveis estão realizando. Há a questão da pandemia, que, espero, esteja minimizada até a data aprazada, pois me parece necessário garantir a presença em plenário das pessoas interessadas em acompanhar o julgamento. Em nenhuma hipótese realizaremos o júri com as portas fechadas. De outra parte, tenho refletido sobre o suporte normativo, a lei processual, que foi feita para outro modelo de caso criminal, em geral com menos acusados e, certamente, com menos imputações de fatos. Neste sentido, tenho buscado contribuir, nas instâncias próprias, com eventuais mudanças legais, que viabilizem, com menos percalços e riscos, o julgamento pelo júri de casos de elevada complexidade, como é o da Boate Kiss, e outros mais que, com algumas diferenças, também encontram dificuldades em sua tramitação dada a configuração atual de nosso Código de Processo Penal. 


OS DESDOBRAMENTOS JURÍDICOS

A reportagem traz, abaixo, os principais pontos acerca do processo principal:

2019 

Outubro

  • O juiz Ulysses Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, determinou que os quatro réus do caso fossem julgados em Santa Maria. Os dois júris foram marcados para 16 de março e 27 de abril de 2020
  • Na decisão, a 1ª Câmara do TJ definiu que os outros três acusados teriam júri conjunto em Santa Maria

2020 

Janeiro

  • O magistrado Ulysses Louzada confirmou a data do julgamento dos acusados Luciano Bonilha Leão, Marcelo de Jesus dos Santos e Mauro Hoffmann em 16 de março de 2020. O júri estava previsto para o Centro de Eventos da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
  • A defesa de Marcelo de Jesus pediu para que, assim como Elissandro Spohr, ele fosse julgado em Porto Alegre. O pedido foi negado em caráter liminar e foi para a 1º Câmara do TJ
  • O MP ingressou com recurso em que solicita que Elissandro seja julgado em Santa Maria, junto dos outros três réus, mantendo a data prevista (16 de março). O pedido foi feito à 2ª Vice-Presidência do TJ, para que seja remetido ao Superior Tribunal de Justiça
  • A defesa de Hoffmann ingressou junto ao TJ com pedido de desaforamento, o que foi negado em caráter liminar
  • TJ nega pedido de suspensão da decisão que determinou que o julgamento de Elissandro fosse em Porto Alegre

Fevereiro 

  • 1ª Câmara do TJ decide que, além de Spohr, Hoffmann e Marcelo de Jesus sejam julgados em Porto Alegre
  • MP ingressa com dois recursos no TJ. Em um deles, solicita que nenhum julgamento ocorresse até ter uma decisão final sobre a comarca onde todos os réus serão julgados. No outro, solicitou que os quatro sentem juntos no banco dos réus na cidade onde ocorreu a tragédia
  • TJ rejeita os dois recursos movidos pelo MP

 Março 

  • Ainda antes da eclosão da pandemia, o Tribunal do Júri estava marcado para o dia 16 de março
  • Naquele momento, o Centro de Eventos da UFSM receberia o réu Luciano Bonilha Leão. Já os demais três seguiam sem previsão de julgamento, uma vez que eles obtiveram no TJ o chamado desaforamento (que é a transferência do julgamento de uma comarca para outra)
  • Dias depois, a pandemia atrasou ainda mais o andamento dos processos em todo o Brasil e, inclusive, o da Kis
  • Com o fechamento dos tribunais, o julgamento foi adiado
  • Porém, como dizem as fontes ouvidas pelo Diário, o desfecho do processo principal já tinha sido "contaminado" por longos e improdutivos debates, por exemplo, sobre o local em que os réus deveriam ser julgados

 Dezembro 

  • É distribuído para o segundo juizado da 1ª Vara do Júri do Foro Central de Porto Alegre o processo principal
  • Após sorteio, a unidade, que foi definida, seria a responsável pelo julgamento dos quatro réus

 2021 

Março

  • Juiz Orlando Faccini Neto, titular do 2º Juizado da 1ª Vara do Tribunal do Júri, em Porto Alegre, é designado para presidir o Tribunal do Júri

Abril

  • Juiz Orlando Faccini Neto marca a data do julgamento do incêndio na Kiss para começar em 1º de dezembro, às 9h, sem data para terminar

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