"É uma mentira que as mulheres abusam da medida protetiva", conta juiz responsável pela Juizado de Violência Doméstica e Familiar sobre o cenário de Santa Maria

Foto: Reprodução

Juiz titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar (JVD) da Comarca de Santa Maria, Rafael Pagnon Cunha

Apesar do constante avanço da mulher em diversos setores da sociedade, o cenário da violência doméstica persiste como um grande adversário na luta imbatível por respeito. Somente no feriadão de Páscoa, entre a Sexta-Feira Santa e Tiradentes, 10 feminícidios foram registrados no Rio Grande do Sul


Em Santa Maria, sete mulheres foram mortas nos últimos seis anos, enquanto o pedido de medidas protetivas aumenta gradativamente: foram 708 solicitações somente neste ano. Não somente trazer números para o debate, é necessário identificar, debater e encontrar formas de combater a raiz deste problema que mata mães, filhas e netas diariamente.


+ Receba as principais notícias de Santa Maria e região no seu WhatsApp

O juiz titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar (JVD) da Comarca de Santa Maria, Rafael Pagnon Cunha, é o responsável por receber os pedidos de medidas protetivas que chegam diariamente, analisá-los e concedê-los. Ao programa Jogo de Cintura de quinta-feira (24), Rádio CDN (93.5 FM), especial pelo fim da violência contra a mulher, ele falou sobre a importância de denunciar, da vítima pedir ajuda, além de contar os desafios enfrentados no dia a dia. Também participaram do debate as advogadas Dieniffer Portela e Karen Guinot e a psicóloga Thaís Araujo.




Atuando no Juizado da Violência Doméstica há cerca de nove anos, Cunha inicia sua fala que esse causa precisa ser combatida desde a sua origem:

– Esse é um tema de que demanda enfrentamento de todos os modos, em todas as searas possíveis. Precisamos mudar a educação das crianças, pois temos réus mais novos em maioria, como também temos réus mais velhos. Sobre os homens mais novos, isso se deve ao  fato da nossa cultura ser machista, pois as famílias são machistas. 


"Mulher não é centro de tratamento, nem centro de recuperação de homem"

As convidadas conversaram sobre a naturalização da violência por parte das mulheres, muitas vezes enraizada na sociedade. São filhas e netas, que viram suas mães sendo criadas dentro de um ambiente violento e que, ao lidarem com uma situação semelhante, acreditam que estão somente repetindo uma situação considerada "comum" em seus respectivos relacionamentos. Mas na verdade, estão sendo vítimas de um crime que pode chegar ao extremo: a morte. O autor do crime? Na grande maioria dos casos, o próprio companheiro.


– Mulher não é centro de tratamento de homem, mulher não tem obrigação com homem. Ela realmente está convicta que vai conseguir mudar aquele homem, mas nunca ela vai conseguir. Só ele próprio vai conseguir fazer isso. Por isso, é necessário dar limites, dar o "não" e tratar esses homens, seja com cadeia e uma estrutura que faça ele refletir sobre tudo isso – alerta o juiz.


A culpabilização da vítima também foi comentada no debate. Ou seja, é quando o próprio agressor, pessoas próximas, filhos e até a sociedade usam discursos para fazer com que a mulher se culpe, ache que "foi a causadora para aquela violência". A vítima, já fragilizada em todos os aspectos, passa a acreditar nessa versão. Como resultado, volta atrás no processo, pede para retirar a medida protetiva ou até reata com aquele que lhe feriu - seja fisicamente ou psicologicamente.


– Enquanto filhos naturalizarem um tratamento violento do pai em relação a mãe, eles vão naturalizar isso. Por isso, é algo que precisamos deixar muito evidente para as meninas: quem cuida não bate. Homem forte não bate em mulher, cuida e protege. Só homem fraco e inseguro pode cometer algo deste tipo. É inaceitável que se veja isso como natural, que se veja o ciúme excessivo como prova de amor. Aquela frase que ouvimos muito no dia a dia "se não for minha, não será de mais ninguém" é ridícula, tenho vontade de vomitar quando ouço isso. É uma coisificação da mulher inaceitável – conta Rafael. 


Suporte psicológico como acolhimento na identificação da violência

Segundo a psicóloga Thaís Araujo, o apoio psicológico ajuda a vítima a identificar que está em uma situação de violência. Porém, existem fatores que podem ser paralisantes:


– O consultório, muitas vezes, se torna a porta de entrada dessa mulher que está nesta situação de abuso e não sabe nem dar nome para aquilo. O psicólogo consegue agir neste momento, ajudando na identificação da violência. Porém, quando a mulher cai em si, ela paralisa. Há uma situação de dependência financeira, tem filhos... e ela se questiona para onde vai? Ela não tem dinheiro, instrução, às vezes não tem nem a família.... ela vai para onde?


Sobre esse aspecto, a advogada Dieniffer Portela reforça sobre a importância da casa de passagem, feita especificamente para receber essas vítimas que não têm para onde ir. As casas de passagem para mulheres servem para acolhimento temporário em situação de violência. Os filhos das vitimas também podem ficar no local. Lá, as vítimas ficam sem contato com o mundo externo.


– Em Santa Maria, a mulher encaminhada por meio do setor de Assistência Social ou pela Polícia Civil. O endereço é sigiloso justamente para proteger quem está lá e seus dados são protegidos – conta.


"Homem dizer que roupa a mulher tem que usar? Isso é abuso"

De acordo com a advogada Karen Guinot, é possível identificar sinais sutis até no início de uma relação, de que aquele namoro pode caminhar para um desfecho tóxico:


– Tem casos que você identifica na fase inicial, ainda no namoro. Quando o outro te priva de fazer algo, controla suas ações, sua roupa, como vai sair e com quem. Isso vai passando no decorrer da relação, entra em um grau de normalidade absurdo que toma proporções enormes.


O juiz Rafael aproveita o gancho e dá um recado importante:

– É fundamental a gente deixar claro: o homem dizer para a mulher que roupa ela deve usar, controlar o que ela deve fazer, isso é abuso, não é cuidado. Isso é violência, não é amor.


"É uma mentira que as mulheres abusam da medida protetiva"

Juiz Rafael Pagnon CunhaFoto: Lenon de Paula (Arquivo/Diário)


A principal forma de combater esse cenário violento é por meio da denúncia, que também pode ser feita de forma anônima pelo 180. Após o registro de um boletim de ocorrência, a vítima pode solicitar uma medida protetiva que, na maioria das vezes, é concedida em menos de 24 horasO descumprimento por parte do agressor gera consequências: a prisão.


– Muitas vezes ouvimos na rua comentários de pessoas falando que a medida protetiva é um pedaço de papel que não resultará em efeito algum. Mas, para aí, os números locais e até nacionais mostram que a imensa maioria das mulheres que têm medida protetiva não são as vítimas fatais de feminicídio – conta o magistrado.


Vale reforçar que, nestes casos, a palavra da vítima, no momento da denúncia, já basta para a solicitação da medida. 

– A lei determina o indubio pró-reu, ou seja, o suspeito deve ser absolvido se houver dúvidas. Mas para a situação de medidas protetivas, temos outra máxima: indubio pró-tutela. Se a mulher traz uma versão que é razoável, mesmo que seja única, será deferida a medida protetiva para ela. Pode acontecer algum problema? Sim. Em que quantidade? Mínima. É outra coisa que precisa ser desconstruída, de que há um monte de mulher que abusa da medida protetiva. Isso é uma mentira. A imensa maioria das mulheres têm razão no que pedem – reforça o juiz.


Confira os números de medidas protetivas solicitadas em Santa Maria:

  • 2021: 1.412 solicitações 
  • 2022: 1.481 solicitações
  • 2023: 1.728 (média de 144 solicitações por mês)
  • 2024: 1.875 (média de 156 solicitações por mês)
  • 2025 (até abril): 708 (média de 177 solicitações por mês)


Outro dado reforçado pelo magistrado é o número de prisões em decorrência de descumprimento de medidas protetivas. De acordo com o​ Juizado de Violência Doméstica e Familiar das 102 prisões preventivas realizadas, 81 foram por descumprimento de medida protetiva. Em 2025, 19 homens já foram presos em Santa Maria por esse motivo.

– É sinal que a rede funciona. Que medidas protetivas funcionam e salvam vidas – conclui o juiz.


Assista ao programa na íntegra:


O que é uma medida protetiva?

A medida protetiva pode ser solicitada logo após o registro da ocorrência e a palavra da vítima é suficiente para sustentar o pedido. É feita via sistema e tem um prazo máximo de 48 horas para ser aprovada. É uma forma de impedir que a pessoa responsável pela agressão se aproxime ou tente algo novamente contra a vítima. Segundo a titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), Elizabete Shimomura, a vítima, preferencialmente, deve fazer esse registro, exceto em casos excepcionais.


As medidas mais comuns que são solicitadas: afastamento do agressor do lar, proibição de aproximação (a distância fica a cargo do juiz que analisa a medida), restrição de aproximação e de contato (restrição de contato não somente com a vítima, mas também com seus familiares, seja física ou por meio de redes sociais ou telefonemas). Uma medida protetiva costuma ter a vigência de seis meses e pode ser prorrogada.


Como pedir ajuda?

É possível que qualquer pessoa faça uma denúncia anônima sobre violência doméstica, por meio do 180. Em Santa Maria, é possível ir na Deam ou na Delegacia de Polícia de Pronto Atendimento (DPPA). Nos dois locais, a vítima pode registrar o boletim de ocorrência e o delegado responsável dará encaminhamento ao pedido da medida protetiva ao Poder Judiciário.


Endereço da Deam:
Rua Duque de Caxias, 1.159, Centro. Horário de funcionamento: de segunda a sexta, das 8h30min às 12h e das 13h30min às 18h. Telefone: (55) 3222-9646 ou (55) 98423-2339


Endereço da DPPA:
Avenida Nossa Senhora Medianeira, 91, Bairro Medianeira. Horário de funcionamento: 24 horas (inclusive finais de semana e feriados)
Telefone: (55) 3222-2858 ou por meio do 190.


Registro pode ser feito online a partir de agora

Na última quinta-feira (24), a Polícia Civil lançou, dentro da Delegacia de Polícia Online da Mulher, uma aba onde a vítima pode registrar o boletim de ocorrência e solicitar a medida protetiva em seguida. Tudo feito de forma online, pelo celular ou computador, sem sair de casa. 


– Após o recebimento, essa medida protetiva entra no sistema e será disparada em tempo real para as delegacias, seja em horário comercial ou em horários alternativos, feriados e finais de semana. Essas delegacias vão receber essas medidas, vão baixar no sistema, indicar a comarca correspondente para que o juiz receba o pedido – explicou o chefe de polícia, o delegado Fernando Sodré.


Em Santa Maria, essas solicitações ficarão centralizadas na DPPA, que ficará com a responsabilidade de receber as ocorrências e já encaminhará os pedidos de medidas protetivas ao Judiciário. No Coração do Rio Grande, cerca de 24 horas após o lançamento, duas medidas solicitadas pela Delegacia Online já haviam sido deferidas. 

Acesse o site e saiba como registrar a ocorrência de forma online: clique aqui. 

Entre os pedidos que podem ser realizados, estão:

  • Afastamento do lar
  • Proibição de o suspeito manter contato e de se aproximar da vítima e de seus familiares
  • Proibição de frequentar determinados lugares
  • Restrição de posse ou porte de armas
  • Restrição ou suspensão das visitas a menores
  • Pensão alimentícia


Leia mais:

Carregando matéria

Conteúdo exclusivo!

Somente assinantes podem visualizar este conteúdo

clique aqui para verificar os planos disponíveis

Já sou assinante

clique aqui para efetuar o login

Anterior

Homem é indiciado por dupla tentativa de homicídio após caso em bar de Santa Maria

Vítima fatal de acidente na BR-158 será sepultada neste sábado em Pejuçara Próximo

Vítima fatal de acidente na BR-158 será sepultada neste sábado em Pejuçara

Polícia/Segurança