Gabriel Haesbaert
No Mês da Consciência Negra, que tem o 20 de novembro como data principal, diversos diálogos são propostos na busca por reconhecimento e respeito pelas diferenças. Esses dois pontos podem transformar o cenário de Santa Maria, que hoje é de preconceito e aumento em casos de injúria racial e racismo. No início de outubro, a assistente social Angela Maria Souza de Lima, 47, viu o racismo fazer mais uma vítima: a própria filha.
Em 13 de outubro deste ano, a adolescente de 13 anos foi ofendida e agredida fisicamente por um colega dentro de sala de aula. O fato ocorreu em uma escola de Santa Maria, na qual a estudante cursa o 7° ano.
– Eu cheguei em casa, por volta de 19h, ela chorava muito. Não consegui compreender o que estava acontecendo. Quando ela me contou, eu tomei as providências. Liguei para a advogada do Movimento Negro Unificado, que me deu todo o respaldo. Como já estava fechada a Delegacia de Intolerância Racial, fomos no outro dia. Eu conversava o tempo todo com ela – relata Angela.
Segundo a mãe, apesar de um boletim de ocorrência ter sido registrado na Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICOI), o caso está sendo investigado pela Delegacia de Proteção a Criança e Adolescente (DPCA), por envolver menores de idade.
Cenário
Desde 2019, a Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICOI) é o órgão responsável por investigar as denúncias de racismo. Apesar de recente, a delegacia desempenha um papel fundamental em Santa Maria e contribuiu para o levantamento de dados relacionados à violência contra a população negra. De janeiro a outubro deste ano, foram registradas 62 ocorrências de injúria racial e 8 de racismo.
À frente da DPICOI, a delegada Débora Dias explica que, até o momento, os dados de 2022 já são mais expressivos que os do ano anterior. Ainda, para Débora, é preciso lembrar que, em 2020, com a pandemia, muitas ocorrências de violência diminuíram, o que não significa dizer que não houve casos de racismo, por exemplo:
– Somente este ano que começamos a fazer compilação de dados analisando inquérito por inquérito e não somente as ocorrências. E, a partir dos meus despachos, é possível verificar que os números em 2022 já são maiores. Os anos de pandemia foram bem atípicos, fora os casos de estelionato, que aumentaram muito, foi possível perceber diferentes números de ocorrências.
Em 2021, uma decisão do Supremo Tribunal Federal equiparou a injúria racial a crime de racismo, assim, tornou-se imprescritível. A grosso modo, significa que o crime não caduca e pode ser julgado a qualquer tempo, independentemente da data em que foram cometidos. Ainda assim, a advogada Amanda Rodrigues lembra que a subnotificação de casos é uma realidade a ser enfrentada.
Diário Explica: qual a diferença entre racismo e injúria racial?
– É comum que pessoas negras que tenham sofrido racismo, principalmente mulheres, tenham receio de denunciar porque ainda existe um discurso que, mesmo as pessoas sendo vítimas, tentam colocá-los em um lugar de culpados. Mas é um crime e precisa ser denunciado. Um desafio é capacitar profissionais que trabalham em órgãos de Justiça para que estejam aptos a trabalhar com seriedade nesses casos.
RACISMO
Contemplados pela Lei Nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, os crimes de racismo dizem respeito a conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos
Estão relacionados ao acesso a uma série de serviços, sejam eles públicos ou privados como, por exemplo, impedir o acesso ou uso de transportes públicos. É imprescritível, logo, pode ser julgado a qualquer momento
INJÚRIA RACIAL
O crime de injúria racial consiste em ofender a honra de uma pessoa a partir de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem
Refere-se principalmente a situações que envolvem a honra ou ferem a dignidade de um indivíduo específico. Assim como o racismo, crimes de injúria racial não prescrevem
DENUNCIE!
Crimes de racismo e injúria racial podem ser denunciados na Delegacia de Pronto-Atendimento, na Avenida Nossa Sra. Medianeira, 91, junto ao CIOSP
Delegacia do Idoso e de Combate à Intolerância é a responsável por atender as ocorrências de crimes do tipo
Ocorrências também podem ser feitas, virtualmente, em delegaciaonline.rs.gov.br
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Após casos de racismo, UFSM investe na valorização dos direitos humanos
Em maio deste ano, uma publicação de cunho racista realizada em rede social por uma estudante do curso de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) ganhou grande repercussão. Na postagem, a aluna escreveu: “tenho pavor de conviver com pessoas escuras, eles devem ter complexo de inferioridade muito forte em relação às pessoas brancas”. Logo após a investigação, a DPICOI remeteu ao Poder Judiciário o inquérito que a indiciou pelo crime de racismo. Ela foi enquadrada em uma das formas qualificadas do crime, quando ele é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza.
Há dois meses, frases racistas acompanhadas de desenhos de suásticas foram escritas em uma parede do banheiro masculino do Restaurante Universitário (RU), no campus sede da UFSM.
De acordo com a vice-reitora da instituição, Martha Adaime, ainda que isolados, os casos são investigados por órgãos da UFSM e também por autoridades policiais. Além disso, a universidade trabalha em iniciativas de formação e capacitação profissional, principalmente voltada a professores de Santa Maria, para que tais crimes não voltem a ocorrer.
– Infelizmente, já enfrentamos casos de racismo e as investigações são levadas a sério. Mas, sabemos que se não enfrentarmos o preconceito na raiz, esse tipo de violência voltará a acontecer. Por isso, o objetivo da UFSM é trabalhar com ações educativas antirracistas em todos os cursos para que os profissionais que estão em formação entendam que racismo não é opinião, é crime – enfatiza Martha.
Diário Explica: qual a diferença entre racismo e injúria racial?
Para o chefe do Observatório de Direitos Humanos (ODH) da UFSM, Victor De Carli Lopes, cabe a instituição de ensino combater o racismo desde a base estrutural, a partir da educação. Desde outubro deste ano, o ODH e o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Neabi) trabalham em uma capacitação para professores das redes públicas de ensino. A iniciativa intitulada “Racismo e Antirracismo: perspectivas pedagógicas” ocorre em parceira com a Secretaria Municipal de Educação e a 8ª Coordenadoria Regional de Educação (8ª CRE), para possibilitar que professores fortaleçam a cultura antirracista para transmitir aos estudantes.
– Percebemos que os estudantes, principalmente os mais novos, trazem o racismo muitas vezes de casa, pelo que escutam nas redes sociais ou dessas informações atravessadas. A escola tem o papel educativo de transformar esses preconceitos. O que fizemos e ainda fazemos pelo Observatório, porque a capacitação junto com o Neabi ainda está em curso, é conseguir trabalhar com os professores como eles podem falar sobre o assunto dentro de sala de aula ou quais são as metodologias com as quais eles podem trabalhar para que isso (o racismo) não seja reproduzido – enfatiza Lopes sobre a importância da capacitação.
Os impactos do racismo são permanentes
A curto ou longo prazo, especialistas explicam como o racismo interfere nos aspectos sociais, econômicos e principalmente, psicológicos do indivíduo que o vivencia.
“Os primeiros contatos com o racismo e tudo que se deriva dele inicia exatamente na infância, geralmente no ambiente escolar, quando a criança sai do seu porto seguro e entra em contato com outras crianças e adultos. Nesse momento, ela se vê como diferente de forma negativa, algo que, muitas vezes, jamais havia acontecido. Esse apontar negativo com falas pejorativas e, até mesmo agressões físicas, é desencadeadora de transtornos futuros”.
Elenize Azevedo, Psicóloga clínica, pós-graduada em Terapia clínica cognitivo comportamental e avaliação psicológica
“O racismo se apresenta nas opressões, desigualdades e violências, tem origens em determinadas crenças, motivadas pela ideia de superioridade, de uso do corpo negro como objeto de gozo, o eterno empregado. Os efeitos psicossociais dessas relações ditam o chamado sofrimento psíquico da população negra. Dados apontam que pessoas negras são 45% mais propensas à depressão e ao suicídio e, dentro desses dados, cabe refletirmos o quanto o racismo está atrelado aos sentimentos”.
Thiago dos Santos Alves, Psicólogo clínico e social, especialista em saúde mental, mestre em psicologia da saúde e doutorando em psicologia social
“O racismo é um problema estrutural e transversal a todos os espaços que permeiam o nosso cotidiano. Para transformar esse cenário, é preciso que pessoas não negras também tomem responsabilidade de contribuir com a luta antirracista. É preciso respeitar o Estatuto da Igualdade Racial, promulgado pela Lei 12.288/10 e conquistado devido à intensa luta do movimento social negro. Precisamos utilizá-lo enquanto uma ferramenta de responsabilização do Estado para garantir de fato a população negra o acesso à saúde, educação, esporte, lazer, acesso à terra, moradia, trabalho, entre outros”.
Aline Vargas Escobar, Assistente Social e residente do Programa de Residência Multiprofissional Integrada em Saúde Mental da UFSM