1º de maio de 2024, início da tarde de uma quarta-feira. Em poucos segundos, o barro tomou conta da Rua Canário, no Bairro Itararé. Um deslizamento de terra deixou duas vítimas e centenas de pessoas desalojadas. Móveis, carros e parte das casas ficaram debaixo da lama. Moradores tentaram resgatar a adolescente Emily da Rocha, 17 anos, e a mãe Liane Ulguin da Rocha, 45, mas ambas perderam a vida. A cena foi descrita, na época, como um filme de terror por aqueles que presenciaram a tragédia.
Há um ano, diante do fato, um alerta: os morros, que pareciam abraçar a cidade, agora, parte oferece risco em seu entorno. Desde então, mais de 200 famílias deixaram as residências. As que permanecem, convivem com a insegurança, o vazio deixado pela saída dos moradores e a espera por um novo lar.

Na última semana, a reportagem voltou à Rua Canário e visitou outros três locais que foram mapeados como área de risco e que famílias precisaram deixar para trás: Vila Santa Terezinha, Vila Bilibio e Vila Churupa.
Na Canário, “é como se o local tivesse saído do mapa”
Falta coleta de lixo e segurança. Sobra silêncio e dúvidas sobre o futuro. Esse é o cenário descrito pelos moradores que permanecem, ainda, na Rua Canário, no Morro do Cechella. Lá, conforme o Executivo, 135 famílias já foram realocadas, na contramão de 24 que não deixaram as casas. Para a dona de casa Luciele de Souza Vargas, 31 anos, é “como se o local tivesse sido tirado do mapa”. Ela completa:
– Estamos aqui abandonados mesmo. Ninguém vem, ninguém conversa, ninguém explica nada. Não temos uma certeza, se vamos poder ficar ou não. Temos coisas para fazer em casa e não podemos, porque não posso investir sem saber. Caiu meu murro e eu não posso arrumar. Vou investir um dinheiro que depois não vai voltar.
Na visita da reportagem ao local, chama atenção o vazio deixado pelas famílias que saíram da Rua Canário. O cenário comum são casas em que só restaram as paredes em pé. Não há portas, janelas, telhado e pessoas. Aos poucos, a vegetação regenera no local onde houve o deslizamento, logo, a cicatriz marrom no verde dos morros, quase passa despercebida.

Questionada sobre o futuro, Luciele afirma que sobram dúvidas do que serão os próximos meses da família:
– O que queremos é uma certeza, se vamos ficar ou não. E, se precisar sair, queremos um lugar digno porque passamos a vida inteira tentando construir e ajustar a vida da gente. Não temos como virar as costas para isso. É difícil! Tem toda uma história por trás disso. Eu moro aqui desde que nasci. É aqui que está a minha mãe, minhas tias e primos.
A mesma insegurança é compartilhada pela tia, Elenir Souza da Silva, de 69 anos. Para ela, muita coisa mudou em quase 12 meses:
– Tu olha e dá uma tristeza. Aqui, tinha lixeiro, pessoas, tinha tudo… Nem motorista de aplicativo chega aqui.
Saída dos moradores deve ocorrer de forma gradual, afirma secretário
A Secretaria de Resiliência Climática e Relações Comunitárias aguarda a conclusão do Plano Municipal de Redução de Risco para planejar soluções para o entorno do Morro do Cechella. Conforme o secretário adjunto da pasta, Edson Roberto das Neves Junior, o que acontece em locais como a Rua Canário é um processo de desmobilização da área em que a retirada das famílias deve ocorrer de forma gradual.
– Não vamos conseguir, de um ano para outro, realocar todas as famílias, de uma maneira brusca, por isso depende de recursos e programas habitacionais. Então, conforme as casas foram adquiridas, iniciou-se o processo de desmobilização e desconstrução da área remanescente. É um trabalho que acontece gradativamente, levando em conta o critério de quem está em maior grau de risco – afirmou o secretário adjunto.
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Quem são as vítimas da Rua Canário
Liane Ulguin da Rocha – Casada e mãe de três filhos, Liane, 45 anos, era decoradora. Ela foi encontrada nos escombros da casa no dia seguinte ao deslizamento
Emily Ulguin da Rocha – Estudante do Ensino Médio, Emily completaria 18 anos no dia 6 de maio. Ela foi encontrada na mesma tarde em que ocorreu o deslizamento
Sobre as mortes de mãe e filha, a Polícia Civil concluiu o inquérito sem nenhum indiciamento, pois não se apurou que houve crime. Logo após o deslizamento, a polícia recebeu denúncias sobre a abertura clandestina de valetas, além da instalação de uma lona em cima do Morro do Cechella, que poderiam ter causado o desmoronamento. Agentes do Instituto-Geral de Perícias foram ao local buscar subsídios para o laudo. Ao final, a perícia apontou que as valetas não foram responsáveis pelo deslizamento.
Rachaduras na estrutura impedem o retorno na Vila Santa Terezinha
Rozane Silva dos Santos, 65 anos, sempre foi boa com datas e, uma em especial, tem sido difícil esquecer: 2 de maio. Esse foi o último dia que esteve dentro da casa onde morava na Vila Santa Terezinha, que fica no Bairro Chácara das Flores e não muito longe do Morro das Antenas. Com as chuvas, parte do terreno cedeu e rachaduras comprometeram a estrutura. Há quase um ano no Programa Aluguel Social, agora, a procura é por um local permanente. Apesar do recomeço há quilômetros dali, toda vez que volta à Vila, Rozane afirma que o sentimento é de saudade. Também de tristeza, por deixar boa parte da vida para trás:
– Não está sendo fácil. Mesmo que eu saia da moradia provisória (Aluguel Social), não vai ser fácil, porque eu estava na Vila há 50 anos. Arrumei um corretor e ele me apresentou um apartamento. É triste, o que eu tinha dentro da minha casa não vai caber metade lá. Minha mesa, que era de seis cadeiras, vou fazer em três.

Conforme a moradora, apenas três famílias – de 35 residências mapeadas – ainda permanecem. No local, há pouco movimento. As ruas, antes cobertas pela lama, agora estão predominadas pela vegetação alta. Mesmo de longe, uma casa laranja chama atenção pela profundidade das rachaduras. É onde vivia Maria da Rocha, 51 anos, com a família. Ela conta que a casa foi a primeira a ser interditada. Ainda no dia 29 de abril, ela e o marido ouviram os primeiros estalos e não demorou muito para que as rachaduras se espalhassem por toda a estrutura. Quando o vidro da porta da frente, que hoje sustenta a placa de “área interditada”, rompeu-se, veio o alerta: era preciso sair de casa.
Desde então, vive em uma residência, em parte custeada pelo Programa Aluguel Social –, após passar alguns dias na casa do filho mais velho. A espera, agora, é por um novo lar permanente. Conforme Maria, ela se inscreveu em um apartamento e encaminhou os papéis para a prefeitura, que analisa se o imóvel está de acordo com os critérios estabelecidos pela Minha Casa, Minha Vida Reconstrução – um programa da Caixa Federal que prevê moradias a famílias que tiveram a unidade habitacional destruída ou interditada.
– Eu ainda tenho algumas coisas aqui (na vila). É pouco, mas tem o nosso apego. Foi onde eu engravidei de dois filhos, tive netos… Não é um dia, são 32 anos. Foram dias de alegria, de tristeza, de dor, mas era o meu lugarzinho. E onde eu estou, não consigo me adaptar. Eu estou muito abalada até agora. Para mim, ainda não caiu a ficha – relatou Maria.
O marido, Paulo César da Rosa, 60 anos, foi uma das primeiras pessoas que identificou o perigo deixado pelas enchentes e a impossibilidade de retorno:
– A nossa casa está detonada. O solo trincou e não tem mais como construir ou tentar arrumar. Também o solo cedendo e descendo para baixo. E as casas de cima também, eu trabalho na área de construção civil e sei que a tendência é irem cedendo também. Eu acho que deveriam tirar todos os moradores daqui, dessa rua onde moramos. A tendência é o cerro descer cada vez mais para baixo – afirmou Rosa.

Na Vila Churupa, a normalidade na rotina de quem permanece
O entra e sai de uma mercearia local, a roupa estendida no varal em um dia ensolarado de outono e o movimento dos moradores da Vila Nossa Senhora Aparecida, conhecida como Vila Churupa, indicam que muitos permanecem nas residências – lar de uma vida inteira, para a maioria deles. O local, também mapeado como área de risco, fica próximo à Rua Canário, entre o Morro do Cechella e a Barragem do DNOS. Ali, as casas foram construídas junto à antiga linha do trem que contornava o morro, mas que foi desativada na grande enchente de 1941.
Próximo ao meio-dia, o autônomo Maicon Silva, 31 anos, tomava chimarrão em frente à casa com a família – o que acompanhava a normalidade na vila na manhã de segunda-feira. Ele conta que “mais da metade”, das 90 famílias, deixaram o local, mas que, aqueles que permanecem, não têm a mínima intenção de sair. O Aluguel Social nunca foi uma alternativa já que, segundo Maicon, não haveria espaço para os instrumentos de trabalho e para os animais de estimação em um apartamento. Fora que, no terreno onde mora, estão investimentos de três décadas. O mesmo acontece com outros moradores da vila, que não gravaram entrevista, mas garantiram que nem procuraram pelos programas sociais, de aluguel ou compra de casa assistida.
– Não é uma área de risco para nós. Eu tenho uma casa, que é minha, então não faz sentido sair. E o que eu tenho aqui... Eles não vão me dar uma casa do tamanho da minha. Moro há 31 anos aqui e não pretendo sair. Esse é o meu pensamento e de muitas pessoas que estão aqui – afirmou Maicon.

Assim como acontece na Rua Canário, os habitantes de local relatam que falta assistência e diálogo com o Executivo. Conforme o morador, o único contato foi ainda no primeiro semestre de 2024, um pouco depois das enchentes:
– Nós, que ficamos, tivemos que resolver as más condições da estrada, porque a prefeitura não vem mais aqui. Nós que fomos, de pá, arrumar.
Residências em R4 terão novas casas, afirma secretário
A espera de Rozane, Maria e Paulo também é a realidade de outros santa-marienses. Até o momento, 170 pessoas estão aptas a receber habitações definitivas, conforme dados da prefeitura de Santa Maria. Desse número, 125 são das proximidades do Morro do Cechella, 34, da Vila Santa Terezinha e seis, da Vila Bilibio. Após futura análise, uma nova relação de contemplados deverá ser publicada – já que a lista enviada pelo Executivo inclui 404 nomes.
Ainda de acordo com a prefeitura, o Executivo municipal trabalha com a meta de adquirir aproximadamente 110 casas para moradores das proximidades do Morro do Cechella. Dessa meta, 47 imóveis já foram adquiridas, um investimento no valor de cerca de R$ 7,98 milhões do total de R$ 21 milhões provenientes de recursos remanescentes do PAC. A aquisição de habitações também ocorre por permuta (Lei da Permuta) e por doações da iniciativa privada, bem como pelo programa Minha Casa, Minha Vida Reconstrução (cujo investimento é do governo federal).
Compra assistida e doações
Dados de junho de 2024 até 24 de abril de 2025
- Mais de 600 pessoas beneficiadas
- Mais de 140 famílias contempladas
- 83 imóveis contratualizados **
- 47 imóveis adquiridos pelo município com recursos próprios
- 10 imóveis via Lei da Permuta
- 5 imóveis via campanha Fé no Rio Grande
- 2 imóveis em loteamentos do município
- 1 imóvel via Construtora BK
- 76 imóveis prospectados via Minha Casa, Minha Vida Reconstrução (18 adquiridos)
- 26 imóveis em licitação e 47 em avaliação de engenharia na CEF
** Imóveis para os quais as famílias contempladas já se mudaram ou estão em vias de se mudar
Fonte: Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária/prefeitura de Santa Maria
Conforme o secretário Wagner Bitencourt, da pasta de Habitação e Regularização Fundiária, Santa Maria é uma das únicas cidades que conduz a compra de casas a partir de duas formas – pelo Programa Minha Casa, Minha Vida Reconstrução e também pela compra assistida. Ainda de acordo com ele, todas as famílias em que a casa está em R4 (risco muito alto) vão receber os imóveis e, até que o processo seja concluído, terão o Aluguel Social prorrogado. O restante (em R3, risco alto) devem retornar aos locais.
Em relação a reivindicação de assistência, Bitencourt afirma que a equipe da Secretaria está a disposição dos moradores:
– Nós temos o trabalho técnico-social que está aqui na Secretaria e também na comunidade fazendo os levantamentos. As pessoas também podem entrar em contato através do nosso canal de WhatsApp ou vir até a Secretaria para tirar alguma dúvida sobre o processo, se informar ou fazer alguma denúncia.
Tipos de risco:
- R1 (Baixo): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com baixo potencial de causar danos e baixa frequência de ocorrência.
- R2 (Médio): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com médio potencial de causar danos, média frequência de ocorrência.
- R3 (Alto): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com alto potencial de causar danos, média frequência de ocorrência e envolvendo moradoras de alta vulnerabilidade.
- R4 (Muito alto): Drenagem ou compartimentos de drenagem sujeitos a processos com alto potencial de causar danos, principalmente sociais, alta frequência de ocorrência e envolvendo moradias de alta vulnerabilidade.
Vila Bilibio: um ano sem o principal acesso
Na Vila Bilibio, mapeada como de risco, a área tem 17 casas que foram notificadas pela Defesa Civil. Com as fortes chuvas registradas entre o final de abril e o início de maio, o acesso principal, próximo à BR-158, ficou intransitável. No trecho, predominado por subidas e descidas, há deslizamentos de terra e rachaduras no solo que dificultam até mesmo as travessias a pé. Por isso, há um ano, um amontoado de terra impede a passagem de veículos.
Como alternativa, os donos de uma propriedade privada vizinha cederam uma parte do espaço para construção de uma estrada provisória. Nos últimos meses, equipes da prefeitura trabalhavam para estabelecer o acesso, que ainda não foi concluído. Conforme os moradores, cerca de 10 famílias deixaram o local. Quem permaneceu, aguarda pela compra de uma nova casa. Esse é o caso de André Barbieri, 44 anos:
– Aqui, está parado. O acesso não foi finalizado mas a principal dificuldade mesmo tem sido a compra das casas, de quem precisa sair. Tem alguns requisitos para a aquisição e, por isso, os imóveis não estão passando. E por enquanto estamos aqui.

No ano passado, laudos da prefeitura de Santa Maria apontaram que há movimentações de massa (terra) na Vila Bilibio. Na área, dois laudos finalizados apontam trechos em R3 (risco alto) e R4 (risco muito alto). Agora, a espera é pelo Plano Municipal de Redução de Risco que deve apontar as soluções para o local.
Plano Municipal de Redução de Risco
A missão de atualizar o Plano Municipal de Redução de Risco, que até então era de 2005/2006, foi dada pela Secretaria Nacional de Periferias (SNP), do Ministério das Cidades, ao grupo de pesquisadores do Laboratório de Geologia Ambiental (Lageolam) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). O trabalho realizado por quatro professores e quatro bolsistas elencou 11 áreas de risco em Santa Maria. O objetivo é visitar e percorrer uma a uma. Os locais estão espalhados por seis bairros: João Goulart, Urlândia, Noal, Salgado Filho, Carolina e Itararé. Neste estudo, somente partes dos bairros são considerados. Se tratam de áreas de riscos que estão dentro destes locais, mas não caracterizam o bairro inteiro. As áreas mapeadas são:
- Área da Vila Schirmer
- Área do Residencial Km 3
- Área da Vila Urlândia
- Área da Vila Santos
- Área da Vila Lídia
- Área do Beco do Guarani
- Área da Vila Canário
- Área da Bela Vista
- Área da Bürger
- Área da Vila Nossa Senhora Aparecida
- Área da Bilibio
Passo a passo do trabalho
- Voo de drone para identificar possíveis áreas de risco
Com ajuda do setor de geoprocessamento da Universidade, os pesquisadores identificam áreas que apresentam riscos hidrológicos, como alagamentos por bueiros e inundações por transbordamento de rios, e geológicos, como deslizamentos. As informações servem de base para as demais etapas do trabalho.
- Mobilização da comunidade
Para garantir a participação da comunidade na elaboração do plano, uma reunião é organizada para colher informações sobre riscos observados por quem vive no local. Como forma de mobilizar as pessoas, estratégias como carros e motos de som, rádios comunitárias e divulgação em escolas são adotadas como canal de comunicação.
- Equipe vai a campo
Com as áreas mapeadas por drone e informações coletadas junto à comunidade, é hora de ir a campo. As equipes visitam os locais para avaliar as estruturas das ruas e casas. Tudo é registrado com anotações e fotografias. A pesquisa será utilizada para a elaboração de um mapa com a indicação dos riscos.
- Elaboração do mapa de risco com possíveis soluções
Os dados obtidos são discutidos e validados pelos comitês integrados por agentes públicos e comunidade residente da área de risco. Após isso, o mapa com a classificação dos graus de riscos hidrológicos e geológicos é elaborado. Um relatório final também deve apontar possíveis caminhos para a solução dos problemas indicados.
Três relatórios já foram entregues
A entrega final do plano está prevista para setembro deste ano. Até o momento, três relatórios já foram disponibilizados. Conforme o secretário adjunto da Secretaria de Resiliência Climática e Relações Comunitárias, Edson Roberto das Neves Junior, a partir desses estudos se iniciou a busca por recursos, com base nas soluções apresentadas no plano.
– Como o próprio nome já coloca, ele visa uma redução. Trabalhar para erradicar o risco é uma meta inatingível. Nós sempre vamos ter cenários de risco. Então, esses planos municipais visam trazer ao gestor alternativas para monitoramento e soluções. Nem sempre a solução será tirar a família de uma área de risco. Algumas soluções podem ser encontradas para manter as pessoas nos locais e para isso haverá uma avaliação do custo dessa obra e também o impacto social.
Ainda de acordo com o secretário, a solução nem sempre será tirar as pessoas das áreas:
– Experiências desenvolvidas ao longo da história mostram que tirar as pessoas de uma determinada área e realocar em outro local dentro da cidade completamente distinta do seu pertencimento, gera uma nova migração. Ou seja, um tempo depois as pessoas acabam retornando para aquelas áreas. Então, esses estudos também levam em conta uma avaliação social do que pode ser feito naquela área.