O dia em que o tio Gilberto teve razão

Tio Gilberto era uma criatura, no mínimo, estranha. A começar pela assimetria física. Quando criança, perdera uma orelha em uma célebre disputa de bodoque (ou estilingue para alguns). Seu Darcílio, na época não era “Seu”, já que tinha apenas 9 anos, apostou com o tio Gilberto cinco picolés e três bolitas raras (bolas de gude) que ele, Gilberto – Betinho da 26 – não conseguiria acertar o vidro da casa do Seu Carlão. Carlão era um daqueles homenzarrões de caminhar firme, fala grossa e com muito pouco riso. “Vamos, Betinho!”, disse Darcílio. Lógico que esse incentivo do Darcílio era muito mais pelo fato de ver o parceiro se dar mal do que realmente ganhar uma aposta. O Betinho acertou. Seu Carlão estava chegando a casa após uma longa tarde de canastra no bar da esquina. Darcílio evaporou e deixou para trás o Betinho. Seu Carlão não perdoou. O gigante Carlão poderia dar uma surra no piá, ou chamar os pais do moleque e dar uma lição de moral em todos, mas não. Era o Carlão. Agora, não era mais só o Carlão; era o Carlão furioso. Foi assim que o tio Gilberto ficou “desorelhado”. A assimetria física começa por aí.

Rir? Quase nunca. Insistir nos erros? Sempre! Tudo isso parecia ser um lema para o Tio Gilberto. Quando viajávamos, era em cima das pontes, sobre os rios correntes, que a insistência desse tio do tipo mula se destacava. Ele errava todos os nomes dos rios, e ninguém podia contrariar. O pai da Laurinha, seu Clóvis, no início da década de 90, já havia perdido duas quadras de campo em apostas furadas que o tio Gilberto lhe garantira. A Dona Alba, costureira afamada no bairro, lamenta até hoje, aos 97 anos, a Belina que comprou por conta de uma indicação do Betinho da 26.

Bom, tio Gilberto nunca foi confiável. Eu não via problema nisso, eu me encantava com as mentiras e com a quantidade de sorvetes secos que eu ganhava para cada promessa não cumprida por esse tio ranzinza, mentiroso e solteirão. É, ele nunca casara, o que me parece óbvio, visto que não há como acreditar em um homem dessa estirpe. Já imaginou as juras de amor? “ Promete amá-la e respeitá-la?”. Sim! Não, esse sim é um não. O tio Gilberto nunca se casou, e não me lembro de ele ter algum affair que fosse.

O Seu Darcílio conheceu a Madalena. A amizade entre o meu tio e o amigo do bodoque ficou um pouco abalada no início. Depois, com o passar do tempo, as coisas foram ganhando contornos de felicidade para todos os lados, até o dia em que o tio Gilberto teve razão.

Todas as sextas-feiras, à tardinha, Seu Darcílio acompanhava a mãe, Dona Guacira, no culto da igreja a qual frequentavam há anos. Madalena nunca foi muito chegada a questões religiosas, mas não se importava com o fato de que Darcílio, agora noivo, fosse. 

Em uma sexta-feira dessas, tio Gilberto resolveu ir a Dilermando de Aguiar em um jantar dançante. Comida, bebida, dança e muita mentira, enfim, uma noite perfeita, não fosse a visão do inferno ao chegar à reunião: Madalena, futura esposa do seu amigo Darcílio, sentada no colo do Joel, um mensageiro do jogo do bicho, mais falso que cédula de R$ 3,00. Joel era jovem, bem apessoado, pobre e mentiroso. Um perfeito falcatrua que jurava amor às mulheres a fim de as levar para cama, inclusive, corriam boatos que a “cama” era a grande qualidade do Joel.

Tio Gilberto não resistiu e contou todo o episódio para o amigo. Darcílio não acreditou. Casou com a Madalena. Tiveram três filhos. O mais velho saiu igualzinho ao pai, Joel. Madalena nunca se aquietou. O Seu Darcílio fingia não ver e não saber de nada, afinal de contas, a ambrosia da Madalena era a melhor do mundo.

De todos, apenas um dos filhos de Darcílio e Madalena é vivo, o Flávio. O Flávio é um cinquentão, no mínimo estranho. A começar pela assimetria física e pela insistência nas mentiras e promessas infundadas.