
Quando pequena, Kelen Ferreira, 31 anos, tinha uma Barbie inseparável. Era tão especial que sequer tirava da caixa. Quase duas décadas depois, a história se repete. Desta vez, com uma boneca semelhante a ela, com a prótese cor de rosa e as cicatrizes deixadas pelo incêndio da boate Kiss. Em março deste ano, Kelen entrou para o seleto grupo de mulheres que viraram Barbie. Mais do que isso: é a primeira vez que brasileiras PCDs são inspirações para a criação da famosa boneca.
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Nasce a Barbie Kelen
Pelotas, zona sul do Estado, dezembro de 2024. Em meio à rotina do hospital, onde trabalha como terapeuta ocupacional, e o tempo dedicado às redes sociais, Kelen recebe uma ligação. Do outro lado da linha, uma representante da empresa estadunidense Mattel. Naquele momento, entre felicidade e surpresa, ela aceitou o convite para participar da campanha Mulheres Inspiradoras (Role Models, em inglês). Do “ah, não pode ser verdade!”, até o lançamento às vésperas do Dia da Mulher, foram semanas dedicadas à criação da Barbie Kelen. A boneca, assim como ela, possui uma prótese transtibial, abaixo do joelho, na perna direita.
– Eu mandei algumas fotos minhas de rosto e de corpo para os detalhes ficarem bem parecidos. E também com a roupa que eu queria,porque, se tu for ver nas minhas fotos com a boneca, a saia é a mesma. Eles conseguiram reproduzir muito bem as minhas cicatrizes e minha prótese – conta Kelen.
A coleção entrou para o universo rosa da Barbie na última terça-feira (4). A criadora de conteúdo Paola Antonini, que interpretou a personagem inspirada em Kelen na série Todo Dia a Mesma Noite, da Netflix, também foi representada. As bonecas são únicas no mundo, por isso, não serão comercializadas. Com a sua em mãos, Kelen celebra a iniciativa:
– Eu fiquei muito feliz porque é a representatividade do corpo com deficiência, da pessoa com queimaduras. Também para entender que eu sou inspiração para milhares de pessoas. Inspiração de superação, resiliência, força e luta. É preciso mostrar que o nosso corpo é bonito.

A Barbie também chegou para fechar um ciclo: o da aceitação. A sobrevivente da boate Kiss conta que demorou anos para superar a perda do pé e as cicatrizes deixadas pelas queimaduras. Roupas compridas, calças e saias longas por muito tempo esconderam o trauma. Também existia, de acordo com ela, um “medo do julgamento”. A grande virada de chave aconteceu há cinco anos:
– Eu comecei a me aceitar e me libertar em 2020, quando eu parei e pensei que precisava me mostrar como eu sou. Não tenho que me preocupar com o julgamento da sociedade e o olhar das pessoas, que, muitas vezes, é de curiosidade e pena por eu ser muito nova e ter acontecido isso. Vivemos em uma sociedade que exige um corpo perfeito, então, antes da amputação, eu já tinha dificuldades de aceitar o meu corpo. Já era algo que eu carregava. E a Barbie veio para fechar esse ciclo de aceitação.
Barbie com corpos reais
A inclusão chegou nas prateleiras, mas também nas telas com a estreia do live-action da Barbie, dirigido por Greta Gerwig, em 2023. A produção não veio acompanhada apenas de bonecas que ganham vida, glitter e imaginação, mas também trouxe anseios de uma sociedade real. As bonecas entraram em cena com raças, etnias e corpos distintos.
Para Kelen, o lançamento da campanha e o próprio filme ajudam na aceitação e acompanham um movimento da sociedade que pede por mais inclusão. Aos poucos, a Barbie de corpo perfeito, olhos claros e cabelo loiro tem dado espaço a outras formas de representação:
– Para as meninas, para quem brinca com a Barbie, isso é muito importante. Precisamos mostrar essa parte da inclusão, principalmente, para aquelas crianças que nascem ou adquirem alguma deficiência. Também porque transmite o empoderamento, a autoestima e a inspiração.
Parceria com Paola Antonini
A coleção também celebra uma amizade. Kelen conta que acompanha a influenciadora Paola Antonini desde 2018. Os conteúdos foram importantes para o processo de aceitação. Quis o destino, que elas se reencontrassem anos depois para a gravação do filme. Era o início de uma parceria:
– Eu conheci a Paola quando os atores foram até Santa Maria, antes da gravação do filme para conhecer os personagens, as histórias reais. Desde então, conversamos e trocamos ideia. É muito legal essa parceria porque ela representou muito bem a minha história, com delicadeza e respeito. E eu admiro muito ela enquanto pessoa – conta Kelen.
Inspirada por Paola, Kelen também ocupa esse lugar de inspiração nas redes sociais. Com quase 200 mil seguidores, ela compartilha parte da rotina e, agora, celebra o lançamento da boneca. É o desejo dela usar o espaço para inspirar outras mulheres.
“Lutamos para que não seja esquecido”
Kelen luta para que a tragédia da boate Kiss não seja esquecida. Ao longos dos anos, tem sido uma voz importante nas ações em memórias às vítimas, no júri e, agora, na busca por inclusão. Para a profissional da saúde, a repercussão da campanha também é uma forma de preservar essa memória:
– Fechamos 12 anos do incêndio e é importante lembrar porque é uma luta de todos. Por todos os jovens que estão nascendo e pelos que já nasceram e começaram a sair. Também pelos meus filhos, pelos meus netos, enfim… por todos. Lutamos para que não seja esquecido.

O projeto
Lançado em 2018, a iniciativa Barbie Role Models surgiu a partir de pesquisas feitas pela marca em parceria com a Universidade de Nova York que descobriu que, desde a idade de 5 anos, muitas meninas começam a desenvolver crenças autolimitantes e pensam que não são tão inteligentes e capazes quanto os meninos. Por isso, o desafio de evidenciar personalidades femininas e ajudar a desfazer preconceitos.
No Brasil, o projeto já contemplou a surfista Maya Gabeira; a biomédica Jaqueline Goes, que coordenou a equipe responsável pelo sequenciamento do genoma do vírus SARS-CoV-2 48 horas após a confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país; a professora Doani Emanuela Bertan, conhecida por trabalhar a inclusão em sala de aula; a cantora Iza, a influencer indígena Maira Gomez e a medalhista de ouro olímpica e ginasta Rebeca Andrade.
Em 2025, além da dupla brasileira, outras amizades icônicas estão sendo celebradas pela marca ao redor do mundo, incluindo as medalhistas de ouro da equipe de ginástica olímpica, Jordan Chiles e Jade Carey (EUA); as atrizes Hannah Waddingham e Juno Temple (Reino Unido); e as tenistas Evonne Goolagong-Cawley e Ash Barty (Austrália).
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