A cicatriz não se mantém na mesma profundidade: o que a juventude pensa após 12 anos da tragédia da boate Kiss

Thais Immig, Bibiana Pinheiro

A cicatriz não se mantém na mesma profundidade: o que a juventude pensa após 12 anos da tragédia da boate Kiss

Fotos: Beto Albert (Diário)

Ryana Mendonça da Silva com a capa do jornal publicada em 28 de janeiro de 2013.

Eles eram crianças em 2013, mas lembram muito bem daquele 27 de janeiro: 


“Eram umas três horas da manhã. Vários helicópteros passando de um lado para o outro. Barulho de sirene. E o desespero das famílias. Lembro de ter visto o incêndio pela televisão. As notícias mostravam os corpos sendo retirados do local. Aumentava e aumentava o número de vítimas. Achamos que ele estivesse lá. Eram pais ligando para os seus filhos. No ginásio, as pessoas reconhecendo os corpos. Os celulares tocando. Aquela cena nunca saiu da minha cabeça. Foi a primeira vez que vi minha mãe chorando. Perdemos amigos. Eram muitas pessoas velando seus entes no mesmo lugar. A cidade estava deserta. Era um silêncio, mas ao mesmo tempo ensurdecedor porque tu sentia a dor. A cidade sempre vai lembrar da tragédia. Todo gaúcho sabe dessa história”.


Cada uma das frases acima, que juntas narram a madrugada do incêndio da boate Kiss foi dita agora por alguns jovens que moram atualmente em Santa Maria, a maioria com idades entre 18 e 23 anos. Na época da tragédia, eram crianças de 6 ou 7 anos, ou adolescentes, mas acompanharam de maneiras diferentes - às vezes escutando o cochicho e o choro dos adultos que tentavam protegê-las de tamanho sofrimento -, o dia mais dolorido da história de Santa Maria. Mesmo com a pouca idade, não há quem não se recorde daquele dia 27 de janeiro de 2013. 

Ao Diário, 40 jovens contaram o que lembram da data e o legado deixado naqueles que, agora, curtem boates, casas de festas e eventos noturnos. Após 12 anos, quais foram as mudanças para que a juventude se sinta mais segura? O que essas crianças de 2013 levaram de lição da tragédia da boate Kiss para suas vidas?

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Para Ryana Mendonça da Silva, 26 anos, que tinha 14 anos na época do incêndio, muita coisa mudou. Ela conta que, no dia da tragédia, acompanhou as notícias pelo jornal e lembra de sentir a dor das famílias. Hoje, aos 26 anos, chega nos lugares e já olha à procura pelas placas e saídas de emergência. É como se, para ela, que cresceu com a cicatriz deixada pela Kiss, aquilo tivesse virado um hábito.

Ryana Mendonça da Silva

– Começamos a cuidar de detalhes que não olhávamos antes – afirma.


A identificação no CDM

Há também, aqueles que lembram como se fosse ontem. Na manhã em que Santa Maria acordou com a tragédia estão as lembranças mais tristes da família de Mailson de Lima, 29 anos (era um adolescente de 17 anos naquele 27 de janeiro de 2013). Foi o momento da procura e da identificação do primo Leonardo, uma das vítimas do incêndio. 

Mailson de Lima com a capa do jornal publicada em 28 de janeiro de 2013.

– Foi o dia mais fatídico da vida da minha família. Santa Maria parecia uma cidade de guerra. Era um silêncio, mas era ensurdecedor porque tu sentia a dor das pessoas. As pessoas sendo avisadas que estavam ali no CDM (Centro Desportivo Municipal) e não queriam acreditar. Na hora do sepultamento, não era só eu velando meu ente. Eram muitas pessoas velando seus entes no mesmo lugar.


A Kiss não deixou traumas em Mailson, mas ele confessa que sempre procura locais onde se sinta seguro. Doze anos depois, há também o sentimento de justiça, relata Mailson:


– O que mudou foi que agora, pelo menos, a gente tem a sensação de justiça. E eu vejo, também, que as leis ficaram mais severas. Aumentaram muito as políticas de segurança para se abrir um estabelecimento. Então, houve uma conscientização válida. Mas pena que precisou que 242 pessoas morressem para se criar essa consciência. 


Memória coletiva 

Nos relatos, a tragédia parece parte de cada um deles. Santa-marienses citaram nomes de tias, amigos, primos, conhecidas e, também, conhecidos de conhecidos. Mas não só isso. Quem não morava na cidade na época diz ter, além das lembranças dos jornais, a memória da busca por identificar quem poderia estar na festa, e a angústia de ver jovens se despedindo do futuro.  

Entre os 40 entrevistados pelo Diário na semana passada, abordados em diferentes partes da cidade, alguns iam na festa, mas não foram. O receio de estar em ambientes fechados e a falta de segurança apareceram muitas vezes nas falas. A aflição da família na orientação com cuidados e a conversa entre amigos, também. Mas alguns admitem que a tragédia está ficando no passado e que já não há o mesmo cuidado com prevenção e a mesma preocupação com segurança por parte de todos. É que a cicatriz não marca a todos do mesmo jeito, nem se mantém na mesma profundidade. É o que destaca o psicólogo e conselheiro no Conselho Regional de Psicologia Diego Gonçalo Moraes Gomes, tratando-se de memória coletiva. 



O processo de naturalização e adaptação é normal ao ser humano. Após o choque inicial, surgem novos sentimentos e formas de agir ao longo do tempo. 

– A percepção coletiva sobre uma tragédia tende a passar por um processo de transformação com o tempo. O impacto emocional e imediato diminui, mas o significado do incêndio da Kiss pode ser ressignificado, especialmente quando ele influencia mudanças nas políticas públicas, nas narrativas sociais ou nas formas de lembrar e homenagear as vítimas. Em 12 anos, o evento pode ser reinterpretado à medida que novas gerações e novas informações contribuem para uma compreensão mais ampla ou mais crítica da tragédia – explica Gomes. 


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Memória na UFSM 

Quase metade das 242 vítimas estudava na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Muitos dos mais de 600 sobreviventes também. Isso não passou despercebido pela jovem Maristani Habitzreiter, 23 anos (com 11 anos em 2013), de Miraguaí, região Noroeste do Estado, ao chegar na cidade para cursar Tecnologia em Agronegócio. Na sua primeira pesquisa, já descobriu a bergamoteira plantada em frente ao Espaço Multiuso, que homenageia as vítimas e os sobreviventes da Kiss. 

Maristani se considera curiosa. O resultado foi encontrar a bergamoteira.

Depois, passando pelos corredores do prédio 44, no Centro de Ciências Rurais, Maristani reparou em quadros de formaturas. Entre as turmas de 2014 em diante encontrava-se: 

Quadro de formandos da Zootecnia de 2014/2, presente no corredor do 44.

– Sendo do Centro de Ciências Rurais, acho que é difícil tu não ouvir nenhum comentário. Tive aula com muitos professores que lecionavam naquela época. E principalmente em janeiro, quando algumas vezes tivemos aula, o assunto sempre vinha à tona. Pesquisar sobre foi a primeira coisa que fiz quando cheguei na cidade. Isso fica para marcar a história de Santa Maria, e para que toda a população esteja mais consciente de que coisas assim devem ser evitadas ao máximo – relata Maristani. 


Alvarás das casas noturnas 

Especialista é como se considera, de alguma forma, a Isadora Cirolini, de 23 anos, que tinha 11 anos em 2013. É por suas aulas no curso de Gestão Ambiental que sabe o que os estabelecimentos precisam para funcionar. E, por isso, presta atenção em tudo – extintores, lotação, saídas de emergência, fluxo de circulação. Ela avalia:

Isadora Cirolini.

– Acredito que a fiscalização, principalmente em Santa Maria, está mais vigente depois do acontecido.


E não só isso, acredita o major do 4º Batalhão de Bombeiro Militar (4º BBM), em Santa Maria, Anderson Menezes. O órgão regulariza as edificações construídas no município e, nos últimos anos, quando se trata de casa noturna, percebe uma mudança na conscientização por parte dos proprietários. 

Foto:Ronald Mendes (Arquivo Diário)

–  Desde 2013, percebemos uma conscientização cada vez maior. Os donos de boates ou de casas noturnas vêm nos procurando previamente para conhecer a legislação, como fazer a execução dos sistemas e, até mesmo, como operá-los. No sentido de ter pessoas treinadas no local para fazer o primeiro atendimento caso haja tumulto, até que o Corpo de Bombeiros chegue. Isso é um grande avanço na conscientização – afirma o major Menezes, lembrando que alguns frequentadores que têm observado irregularidades ou problemas procuram os bombeiros para denunciar, o que não ocorria antes da Kiss – reforça major Anderson.


O que dizem os 40 jovens 

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