
A partir de casos emblemáticos como o de uma menina de 11 anos de Santa Catarina que, no primeiro momento, foi impedida de realizar um aborto após ter sido estuprada, e da atriz Klara Castanho, que teve uma situação traumática e a doação de um bebê divulgados pela mídia, o Brasil tem mergulhado em discussões sobre violência sexual. O tema deu visibilidade aos altos índices de ocorrências relacionadas a estupro e estupro de vulneráveis registrados em estados brasileiros.
Conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, na última década, 583.156 pessoas foram vítimas de estupro e estupro de vulneráveis. Só em 2021, foram registrados 66.020 boletins de ocorrência.
No Rio Grande do Sul, os números são alarmantes. Ao todo, 10.057 pessoas foram vítimas destes crimes nos últimos dois anos e meio, segundo a Secretaria Estadual de Segurança Pública. Deste quantitativo, 8.714 foram cometidos contra meninas e mulheres. Só no primeiro semestre de 2022, foram 1.503 casos.
O índice de Santa Maria também preocupa. No primeiro semestre de 2022, já foram registradas 13 ocorrências. Nesta reportagem, entenda como o município e órgãos responsáveis têm buscado combater a cultura do estupro e acolher as vítimas da violência sexual.
Dor e acolhimento

A reportagem do Diário conversou com uma jovem que foi estuprada em 2018, em Santa Maria. A pedido da entrevistada, que não se sente à vontade e nem segura para se identificar, no relato, ela será apresentada sob o nome fictício de Vitória, para proteger a identidade e integridade.
A violência ocorreu em um domingo e, após chegar em casa brutalmente machucada, a jovem deitou, se cobriu completamente com as cobertas e seguiu do mesmo modo durante quatro dias. Naquele momento, Vitória sentia somente dor e culpa:
– Ele [o estuprador] me deixou viva. Subi lances de escada sangrando e, naquele momento, só conseguia pensar em me enfiar na cama e não queria que a minha mãe me visse daquele jeito. Fiquei assim até quinta-feira, quando ela me salvou, me descobriu e me encorajou a fazer um boletim de ocorrência. Conseguimos identificar o agressor.
A partir deste momento, uma série de negligências de amigos, familiares e profissionais da saúde transformaram a vida de Vitória. No atendimento médico privado, a médica que a atendeu desacreditou da gravidade da situação.
– Eu sei que ela deveria me dar um coquetel de remédios como medida profilática. Mas não me deu. Ela não acreditou que eu tinha sido estuprada. Desde então, positivei para HPV e tive papilomas na vagina, além das fissuras anais. Há 4 anos, eu trato de todas as consequências físicas e psicológicas que o estupro me causou. Tentei suicídio, fui internada em um hospital psiquiátrico. Virei motivo de fofoca no meu grupo de pesquisa. E só hoje eu consigo falar sobre o sofrimento diário – desabafa Vitória.
Atualmente, Vitória encontra coragem de contar o que viveu e forças para dar continuidade à vida no filho, que teve em 2020, durante a pandemia, e na mãe.
Ela acredita que sua história pode auxiliar outras meninas na busca por ajuda psicológica e jurídica e, ainda, cria um alerta para a efetividade dos serviços que atendem pessoas vítimas de violência sexual.
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Espaço sem julgamento
Conforme a psicóloga clínica Elenize Azevedo, o acompanhamento psicológico precisa ser um espaço de acolhimento para a vítima, tornando-se um lugar sem julgamentos. Entretanto, muitas vítimas ainda encontram empecilhos neste processo:
– O grande problema ainda é a dificuldade de acesso aos serviços públicos. Muita gente ainda não tem como buscar essa ajuda e acaba ficando sozinha, guardando essa dor consigo.
Quando não há acompanhamento ou assistência, a pessoa que sofreu a violência pode apresentar transtornos que irão afetar direta ou indiretamente o cotidiano.
– Geralmente, o que mais vemos é que todas as vítimas, independentemente de serem crianças ou mulheres, têm depressão a partir desta culpa, sofrem de ansiedade, nos casos mais graves. Vemos muito estresse pós-traumático, dificuldade social como sair à rua ou ir a determinados lugares. A pessoa não tem mais confiança em homens, quando a violência parte de um homem. Enfim, é algo que implica em toda a esfera de relacionamentos – afirma a psicóloga.
Para Elenize, uma das funções da terapia nestes casos sempre será ressignificar o trauma vivido:
– A ferida psicológica causada pelo estupro é de difícil superação. Nós até temos uma ideia de que dificilmente a pessoa se cura por completo dessa ferida emocional. Então, o que fazemos é um trabalho no sentido de ‘o que fazer com o que foi feito de você’, na qual a pessoa possa se amar novamente e tirar a culpabilização, porque geralmente essas vítimas se sentem muito culpadas, sendo crianças ou não. Dentro da terapia, buscamos empoderar para que possam seguir as suas vidas novamente.
O que diz a legislação brasileira

De acordo com a Lei nº 12.015, de 2009 do Código Penal Brasileiro, estupro é definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A advogada Amanda Rodrigues, especialista em advocacia com perspectiva de gênero, explica que o estupro é um crime sexual:
– Quando falamos em estupro, nos referimos a toda a qualquer conduta sexual não consentida. Até 2009, a lei brasileira falava em penetração. Felizmente, houve um avanço nesse sentido e que abrange não somente as mulheres. E, claro, o estupro é uma violência sexual. Esse segundo termo é mais abrangente e considera diversas condutas, algumas, inclusive, nem estão no código penal brasileiro, mas devem ser consideradas e igualmente levadas a sério.
Ainda, segundo a advogada, outro avanço significativo na lei brasileira foi a criação do tipo penal estupro de vulnerável. O conceito também é consequência da Lei nº 12.015, de 2009:
– Por muitos anos, estupro de vulnerável se referia somente ao ato libidinoso praticado contra pessoas com enfermidades ou deficiência mental. Agora, crianças e adolescentes menores de 14 anos também estão incluídos no tipo penal. Ou seja, entende-se que estupro de vulnerável se relaciona com toda e qualquer pessoa que não tem o discernimento necessário para a prática do ato.
Os dados estaduais apresentados nesta reportagem, estão divididos por etnia, gênero e faixa etária, sendo que foram considerados apenas ocorrências envolvendo crianças e adolescentes de 0 a 14 anos na classificação de estupro de vulneráveis. Esses índices podem ser conferidos a seguir.
Estupro de vulneráveis nos últimos anos
2020
- Total – 3.156 vítimas | Deste quantitativo, 2.645 são meninas (84% do total)
2021
- Total – 3.186 vítimas | Deste quantitativo, 2.675 são meninas (84% do total)
2022 (de janeiro a maio)
- Total – 1.087 vítimas | Desde quantitativo, 926 são meninas (85 % do total)
Índices de estupro de vulneráveis por etnia e gênero no RS (janeiro a maio de 2022)*
- Amarela – 4 casos (4 vítimas femininas)
- Branca – 836 caos (716 vítimas femininas e 120 masculinas)
- Preta e parda – 238 casos (198 vítimas femininas e 40 masculinas)
- Indígena – 2 casos (2 vítimas femininas)
- Sem informação – 7 casos (6 vítimas femininas e 1 masculina)
*A classificação por raça é oriunda da declaração em ocorrência. Os casos em que não foi fornecida definição foram englobados na categoria ‘sem informação’.
Estupro
2020
- Total – 1.117 vítimas | Deste quantitativo, 1055 são mulheres (94% do total)
2021
- Total – 1.095 vítimas | Deste quantitativo, 1016 são mulheres (93% do total)
2022 (de janeiro a maio)
- Total – 416 vítimas | Deste quantitativo, 397 são mulheres (95% do total)
Índice de estupro por gênero, etnia e faixa etária no RS (de janeiro a maio de 2022)
Feminino
Amarela (Total: 1)
- 12 a 17 anos – 1 vítima
Branca (Total: 306)
- 12 a 17 anos – 63 vítimas
- 18 a 24 anos – 62 vítimas
- 25 a 29 anos – 34 vítimas
- 30 a 34 anos – 31 vítimas
- 35 a 39 anos – 33 vítimas
- 40 a 44 anos – 26 vítimas
- 45 a 49 anos – 27 vítimas
- 50 a 54 anos – 11 vítimas
- 55 a 59 anos – 10 vítimas
- 60 a 79 anos – 9 vítimas
Preta e parda (Total:88)
- 12 a 17 anos – 28 vítimas
- 18 a 24 anos – 23 vítimas
- 25 a 29 anos – 8 vítimas
- 30 a 34 anos – 12 vítimas
- 35 a 39 anos – 8 vítimas
- 40 a 44 anos – 3 vítimas
- 45 a 49 anos – 3 vítimas
- 50 a 54 anos – 2 vítimas
- 60 a 79 anos – 1 vítima
Indígena (Total: 1)
- 12 a 17 anos – 1 vítima
Sem informação (Total: 1)
- 18 a 24 anos – 1 vítima
Masculino
Amarela (Total: 0)
Branca (Total: 15)
- 12 a 17 anos – 7 vítimas
- 35 a 39 anos – 1 vítima
- 40 a 44 anos – 1 vítima
- 50 a 54 anos – 2 vítimas
- 55 a 59 anos – 1 vítima
- 60 a 79 anos – 3 vítimas
Preta e parda (Total:4)
- 12 a 17 anos – 1 vítima
- 18 a 24 anos – 2 vítimas
- 30 a 34 anos – 1 vítima
Indígena (Total: 0 )
Sem informação (Total: 0)
Número de vítimas dos crimes de estupro de vulneráveis e estupro no RS nos últimos três anos:
- 2020 – 4.273 vítimas
- 2021 – 4.281 vítimas
- 2022 – 1.503 vítimas (janeiro a maio)
Fontes: Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 e Secretaria Estadual de Segurança Pública
A realidade de Santa Maria
Em Santa Maria, foram registradas 44 ocorrências na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Santa Maria, sendo 31 em 2021 e 13 no primeiro semestre de 2022. Ao Diário, a delegada da Deam, Elizabete Kaoru Shimomura, explica como funciona o processo após a realização da ocorrência:
– Elas são encaminhadas, se o estupro é recente, para o Husm para que sejam tomadas as providências profiláticas. Elas tomam um coquetel e são encaminhadas para o IGP, para fazer o exame de verificação sexual e de lesão, caso tenha. Na Deam, temos serviços ofertados por acadêmicas de psicologia que fazem o atendimento às vítimas, caso aceitem. Enfim, todo o procedimento é feito até que se consiga concluir o inquérito.
Os dados apresentados abaixo estão divididos em faixas etárias das vítimas, locais, uso de drogas ou outras substâncias por um dos envolvidos, autores e faixa etária dos autores.
Estupro
2021
- Total – 31 ocorrências
Faixas etárias das vítimas
- 10 a 20 anos – 2
- 21 a 30 anos – 11
- 31 a 40 anos – 6
- 41 a 50 anos – 8
- 51 a 60 anos – 3
- 61 a 70 anos – 1
Locais
- 10 em via pública
- 15 na residência dos envolvidos
- 3 no trabalho
- 2 em outros locais
Uso de drogas ou álcool por um dos envolvidos
- 20 onde não ocorreu o crime
- 11 onde ocorreu o crime
Autores
- 9 desconhecidos da vítima
- 22 conhecidos da vítima
Faixa etárias dos autores
- 10 a 20 anos – 7
- 31 a 40 anos – 5
- 41 a 50 anos – 5
- 51 a 60 anos – 4
- 61 a 70 anos – 2
2022 (janeiro a junho)*
- Total – 13 ocorrências
Faixas etárias das vítimas
- 10 a 20 anos – 1
- 21 a 30 anos – 7
- 31 a 40 anos – 4
- 41 a 50 anos – 1
Locais
- 4 em via pública
- 6 na residência dos envolvidos
- 2 no trabalho
- 1 em outros locais
Uso de drogas ou álcool por um dos envolvidos
- 10 onde não ocorreu o crime
- 3 onde ocorreu o crime
Autores
- 4 desconhecidos da vítima
- 9 conhecidos da vítima
Faixa etárias dos autores
- 10 a 20 anos – 1
- 21 a 30 anos – 3
- 31 a 40 anos – 2
- 41 a 50 anos – 1
- 51 a 60 anos – 2
Fonte: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher Santa Maria
*Dados atualizados até 30/06/22. Conforme o Deam SM, como alguns procedimentos ainda se encontram sob investigação, pode haver uma discrepância no número de autores para com o número de vítimas.
O QUE É A DEAM?
- Serviço que realiza ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal. No Deam, é possível realizar boletins de ocorrência e solicitar medidas de proteção de urgência, nos casos de violência doméstica contra mulheres.
- Horário de atendimento – De segunda a sexta-feira, 8h30min ao meio dia e das 13h30min às 18h. Nos finais de semana, as ocorrências podem feitas durante plantão 24h pelos telefones (51) 3288-2172, (51) 3288-2284 e (51) 3288-2289
- Telefone – (55) 3222-9646
- Endereço – Rua Duque de Caxias, 1.196, Bairro Bonfim
Atendimento da rede pública de saúde
Em Santa Maria, segundo a enfermeira Bruna de David da Rocha, responsável pela Saúde da Mulher do município, vítimas de violência sexual podem procurar atendimento imediato nos postos de saúde, Estratégia Saúde da Família (ESFs) e em unidades de urgência e emergência, como o Pronto-Atendimento do Patronato, Pronto-Atendimento Ruben Noal e UPA 24h, por serem ‘porta aberta’ para qualquer tipo de violência. No entanto, a maior referência em atendimento de pessoas vítimas de violência sexual da cidade é o Setor de Matriciamento em Violência Sexual do Hospital Universitário de Santa Maria.
— Toda e qualquer unidade de saúde deve estar apta para realizar o atendimento primário das vítimas de violência com, pelo menos, medidas profiláticas e testes de ISTs. E deve ser realizado um encaminhamento ao setor de Matriciamento do Husm que, além das medidas referentes à profilaxia e contracepção de emergência, também pode oferecer atendimento psicológico. Hoje, para nós que trabalhamos com saúde da mulher, o Matriciamento em Violência Sexual é uma referência e tem uma equipe de profissionas capacitados para esse tipo de atendimento que é complexo e exige muita sensibilidade — diz Bruna.

Conforme Bruna, casos ocorridos em um prazo de até 72 horas envolvendo crianças são encaminhados ao Pronto-Socorro do Husm. No caso de homens que sofreram violência sexual, o atendimento ocorre pelo Pronto Socorro Adulto e para mulheres, pelo centro obstétrico. Quando os casos são referentes a uma violência sexual ocorrida em período maior de tempo, não ocorre o encaminhamento para o hospital, sendo realizada a assistência nas unidades de saúde. O direito a um aborto legal também é enfatizado pela enfermeira, que garante ser de obrigação da Secretaria Municipal de Saúde auxiliar no processo.
– Nos casos que passou do período e que por ventura, aquela menina tenha engravidado, encaminhamos para o Husm também para a equipe de Matriciamento e ela terá direito a um aborto legal. O procedimento não é realizado no hospital. Mas, temos uma referência para a região que é o Hospital Materno-infantil Presidente Vargas, que fica em Porto Alegre. Enquanto Secretaria de Saúde nós auxiliamos com o transporte dessa paciente até Porto Alegre, quantas vezes for necessário – afirma Bruna.
Também integrante do Fórum de Enfrentamento a Violência Contra as Mulheres, Bruna relata que Santa Maria não possui um centro de referência específico para a situação, mas o grupo trabalha na proposição de um local que possa agregar todas as especialidades necessárias para o atendimento integral a saúde das mulheres.
– Nós não temos um serviço especifico para violência sexual, que é o que falta no nosso município. Mas, nós conseguimos encaminhamentos dentro dos nossos protocolos para um psicólogo que já recebe outros pacientes dentro da rede, do espaço Bem-me-quero, que presta esse primeiro acolhimento, uma psicoterapia breve.
Onde buscar atendimento imediato
Pronto-Atendimento Municipal (PAM)
- Endereço – Av. Jorn. Maurício Sirotski Sobrinho, 70, Bairro Patronato
- Telefone – (55) 3223-9927
Pronto-Atendimento Ruben Noal
- Endereço – Avenida Paulo Lauda, 80 Cohab, Bairro Tancredo Neves
- Telefone – (55) 3214-2077
Unidade de Pronto-Atendimento 24h
- Endereço – R. Ari Lagranha Domingues, 188, Bairro Nossa Senhora do Perpétuo Socorro
- Telefone – (55) 3028-9167
Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam)
Serviço que realiza ações de prevenção, apuração, investigação e enquadramento legal. No Deam, é possível realizar boletins de ocorrência e solicitar medidas de proteção de urgência, nos casos de violência doméstica contra mulheres.
- Horário de atendimento – De segunda a sexta-feira, 8h30min ao meio dia e das 13h30min às 18h. Nos finais de semana, as ocorrências podem feitas durante plantão 24h pelos telefones (51) 3288-2172, (51) 3288-2284 e (51) 3288-2289
- Telefone – (55) 3222-9646
- Endereço – Rua Duque de Caxias, 1.196, Bairro Bonfim
Arianne Lima, [email protected]
Leandra Cruber, [email protected]