
Foto: Beto Albert
No seu trabalho como farmacêutica no Hospital São Francisco de Assis, ou como a “Dra. Florisbela, especialista em besteirologia” na ONG Esquadrão da Alegria, que leva um pouco de conforto por meio de brincadeiras a pacientes dos hospitais de Santa Maria, Gabriela Nunes Flores procura retribuir todo o carinho e o cuidado que teve quando sua vida foi salva por médicos e outros profissionais da saúde quando ela era bebê. Do fundo de seu coração, ela tem como missão ajudar a salvar vidas como forma de retribuição. Aos 27 anos, Gabriela também guarda no peito um grande amor, por uma pessoa que compartilhou com ela não só o útero materno.
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Depois do parto prematuro, aos 7 meses, que ganhou destaque nacional na imprensa, em 1998, ela viveu juntinha da irmã Rafaela por quase seis meses. As irmãs xifópagas de Santa Maria, que chamaram a atenção dos gaúchos e dos brasileiros nas manchetes de jornais e da TV na época, foram separadas em uma complexa e longa cirurgia no Hospital Santa Casa de Porto Alegre, em 1º de julho de 1998. A cirurgia foi um sucesso, para alívio da família e alegria dos milhares de gaúchos que acompanharam pela imprensa e torciam pelas gêmeas. As manchetes de jornais destacavam a grande vitória das xifópagas de Santa Maria.

– A mãe descobriu no ultrassom. Viu que eram duas, mas duas juntinhas – conta Gabriela, lembrando que elas eram gêmeas idênticas, univitelinas, geradas de um mesmo óvulo.
Mesmo 27 anos depois, Gabriela ainda guarda muitos registros de recortes de jornais da época, que foram juntados pela tia e mãe do coração Sirinea Flores Arruda, 63 anos. Em duas pastas e nos álbuns das fotos de família, a história das irmãs xifópagas de Santa Maria é contada. As notícias da época retratavam a angústia dos pais e da família, o grande desafio de acompanhar o caso delicado por meses até conseguir fazer a cirurgia de separação, e a alegria para sucesso da operação.
Luta pela sobrevivência
As imagens das irmãs unidas pelo tórax chamavam muito a atenção na época, por ser um fato raro – um caso a cada 100 mil partos. Cada uma nasceu com 2,2 quilos. O grande temor era se elas sobreviveriam à longa e complexa cirurgia, principalmente porque era preciso separar o fígado em dois de uma forma que cada metade seguisse funcionando. Depois, como ficariam a região do esterno, abdômen e a divisão do pericárdio e fígado, que ambas compartilhavam. Mesmo com todo o procedimento pelo SUS, para a família, de baixa renda, era complicado ficar meses em Porto Alegre para os preparativos e o pós-operatório. Elas nasceram no Hospital Presidente Vargas, na Capital, mas foram separadas no Hospital Santa Casa de Porto Alegre. A família e amigos ajudaram não só no apoio emocional, mas também financeiro.

Porém, o fato de nascer unida à irmã e ter de lutar pela sobrevivência não foi o único grande desafio e baque para Gabriela em sua vida. Infelizmente, da irmã Rafaela e dos pais, restam só fotos e lembranças. Rafaela acabou morrendo quando tinha 1 ano e 8 meses. Os pais faleceram quando Gabriela tinha 11 anos.
– A gente era unida pelo tórax, o osso esterno. Eu tenho a minha cicatriz daqui do peito até o umbigo, e cicatrizes para retirar pele para os enxertos. A gente compartilhava o fígado, o osso externo e o pericárdio, que é a membrana que envolve o coração. Tiveram de fazer toda a separação, mas só o fígado que era mais complicado porque era um só para as duas. Mas conseguiram, com a graça de Deus, separar. Deu tudo certo. Foi bastante tempo de recuperação porque era uma cirurgia complexa, ao todo foram 11 meses de internação em Porto Alegre – afirma.
Logo em seguida, ambas vieram para casa, em Santa Maria.
– Tirando a cicatriz, a gente não teve nada aparente de problema de saúde. Eu tenho hoje só hipotireoidismo, mas nada que interfira para fazer as coisas cotidianas. Tenho sopro no coração e desvio na minha aorta por conta da cirurgia, o que me impedia de levantar peso. Mas isso foi melhorando com o tempo. A questão respiratória dela (Rafaela) era mais complicadinha, mas não usava nenhum aparelho para auxiliar. As duas tiveram pneumonia na época, mas ela, como era mais fragilizada, não resistiu. A minha irmã faleceu, na verdade, por uma pneumonia viral, com 1 ano e 8 meses.
A ausência de Rafaela acabou sendo amenizada, de alguma forma, um ano depois, pelo nascimento da irmã mais nova, Daniela. Gabriela conta que acabou crescendo como uma criança normal, praticamente sem limitações por conta da cirurgia de separação.
– Minha infância foi de uma criança saudável. Normal. Claro que tendo cuidados. Como tenho ainda a cicatriz, não podia bater. Na escola, eu não fazia na educação física qualquer atividade com choque. Eu fazia xadrez e representava a escola em competições do município e do Estado, mas não fazia vôlei e futebol. Eu me considero uma pessoa muito estudiosa, sempre quero me aprofundar mais – diz Gabriela, que gostava de frequentar o CTG.
Grande baque
Quando tudo parecia bem, outro grande baque. Aos 11 anos, Gabriela perdeu os pais. Ficou ainda mais próxima dos tios Vilmar José Arruda, 72 anos, e Sirinea, que chama de pais, da avó Hilda Pujol Flores, 95 anos – com quem mora até hoje – e dos irmãos David, Daniela e Katiuska.
Anos mais tarde, quando teve de decidir a profissão, na adolescência, não teve dúvidas de que área seguir. Ela passou em Farmácia na UFSM, porque queria ajudar a salvar vidas.
– Escolhi a área da saúde porque queria poder participar e ajudar os pacientes, principalmente hospitalares. Por isso, me especializei nisso. Eu quero transmitir toda aquela ajuda que recebi na época, agora quero fazer minha parte pelos outros. Quero sempre me especializar e ser a melhor profissional possível. Agradeço a todos, desde o pessoal da higienização, até os enfermeiros, médicos e técnicos, também aos amigos que apoiaram tanto – diz Gabriela.
A jovem se formou em janeiro de 2020 e, meses depois, enfrentou seu primeiro grande desafio. Como recém-formada, já teve de encarar o trabalho na grande e mortal pandemia da Covid-19, atuando pela Residência Multiprofissional da UFSM no Centro de Referência do Covid em Santa Maria, em que atendia o público. Apesar do desafio, nada tirou a motivação de Gabriela. A jovem fez residências em Vigilância em Saúde e em Saúde do Adulto com Doenças Crônica-Degenerativas, área em que faz agora o Mestrado em Ciências da Saúde na UFSM, focado no atendimento a pessoas com diabetes.
– Essa menina, não tem o que falar, só orgulho mesmo, porque ela se joga no estudo, quer vencer e crescer. Aquela fé que eu transmiti para ela, agora ela que tá me dando força e vamos seguindo em frente – conta a tia e mãe de coração Sirineia.
Trabalho voluntário
Mesmo com o trabalho no hospital e o mestrado, Gabriela acha um tempo para o trabalho voluntário, em que leva diversão e carinho a pacientes de hospitais.
– Eu faço parte da ONG Esquadrão da Alegria, que visita hospitais daqui. Eu sou a doutora Florisbela, é uma doutora besteirologista, que cuida das besteiras, alguns miolos moles, alguns parafusos soltos. Ela ajuda os pacientes que estão necessitados a dar um conforto no dia a dia, porque estão num momento fragilizados. Então, é uma outra parte de mim que eu gosto. Faz três anos que eu faço parte e é o que eu mais amo fazer, além do trabalho de farmacêutica. É um outro lado que a gente vê, daquele que fica um tempo internado precisando de um conforto. É uma metade de mim que eu também amo – diz ela, orgulhosa.
A vida segue, mas o passado está sempre presente, ao alcance dos olhos. Além da saudade e do amor, no peito Gabriela também guarda, até hoje, a cicatriz da parte que a unia fisicamente à irmã Rafaela.
– Ela é meu amorzinho. Eu não conheci, não lembro muito bem, mas é como se fosse uma outra parte da gente. A gente tem sempre tem uma ligação. Sempre fica essa tristeza, mas Deus sabe o que faz. A gente vai vivendo. Eu acredito que onde ela esteja, ela está olhando por mim, e eu oro pra ela também – recorda Gabriela, que um dia ainda gostaria de reencontrar os médicos e profissionais que fizeram a cirurgia de separação em 1998 – Eu agradeço toda a equipe médica, o Fernando Lucchese e a Silvana Molossi, da Santa Casa. Foram uns 40 médicos e profissionais – diz Gabriela.
Condições parecidas
Gêmeos que nascem com partes dos corpos unidos são chamados de xifópagos, siameses e conjugados. Muitos compartilham ou um mais órgãos. A estimativa é de um caso a cada 100 mil partos, podendo chegar a um caso a cada 200 mil partos, em algumas regiões do planeta. A situação mais rara é quando nascem unidos pelas cabeças, sendo um caso a cada 2,5 milhões de nascimentos
- Como ocorre: segundo especialistas, há duas teorias para a formação dos siameses. Segundo o Wikipedia, “as teorias do desenvolvimento embrionário dos gêmeos conjugados são opostas. A primeira é a teoria da fissão sugerindo que um único óvulo fertilizado sofre uma divisão incompleta ou parcial resultando em embriões unidos entre si. A segunda é a teoria da fusão e esta sugere que existem dois discos embrionários fundidos secundariamente em determinadas regiões específicas.”;
- Siameses: ainda segundo o Wikipedia, “O termo ‘siameses’ originou-se de uma famosa ocorrência registrada desse fenômeno: os gêmeos Chang e Eng, que nasceram no Reino de Rattanakosin (atual Tailândia) em 1811, colados pelo tórax. Eles casaram, tiveram 22 filhos e permaneceram unidos até o fim de seus dias. Existem poucos casos de siameses triplos, pois são muito raros. O livro Curiosidades da Medicina de Gould e Pyle cita um caso, no século 19, na Sicília, onde três garotos teriam nascido com um único tórax, dois corações, dois estômagos, dois pulmões e três cabeças”;
- Alguns siameses famosos: nos EUA, as gêmeas Abbey e Brittany Hensel nasceram em 1990 com um corpo e duas cabeças. Cada uma possui um coração, um pulmão, um estômago e uma coluna vertebral. Ficaram conhecidas ao estrelar vários documentários na TV. Eles fizeram prova de direção e dirigem carro e se formaram na universidade. Na Índia, os irmãos Shivanath e Shivram Sahu nasceram em 2002 compartilhando as mesmas pernas e são adorados no país como uma encarnação divida.